segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Tikashi Fukushima (1920-2001) - De dia, fazia molduras, à noite, pintava quadros

Do outro lado do mundo
     Ano de 1940. Estamos em Lins, uma cidade de porte médio no interior do Estado de São Paulo, que, no momento desta narrativa, teria, quando muito, uns trinta mil habitantes, quase todos com sua atividade ligada ao campo. Dois jovens de origem nipônica, emocionados, se encontram e se comunicam no idioma de sua terra natal.
     Um deles é Tikashi Fukushima, 20 anos, fugitivo de guerra, que acabava de chegar ao Brasil. E chegou ao Brasil bem a tempo, pois o Japão, envolvido em acordo secreto com os nazistas, em breve atacaria a base de Pearl Harbour, nos Estados Unidos, entrando abertamente no conflito, fechando suas fronteiras e tornando quase impossível a saída do país. Havendo trabalhado em sua terra como desenhista, agora, premido pelas circunstâncias, foi para a lavoura, arrancar da própria terra o seu sustento.
     O outro é Manabu Mabe, um adolescente de 16 anos, no Brasil desde 1934, e que, juntamente com a família, também era um trabalhador rural. O que o unia ao recém chegado, além da pátria, era a paixão pelo desenho e pela pintura. Braços cansados e mãos calejadas, ainda encontrava fôlego e tempo para fazer suas experiências com as tintas, copiando da natureza as cores fortes e brilhantes que tanto o impressionaram no Brasil.
     Anos se passaram e os dois seguiram, por caminhos diferentes, o mesmo destino que a vida lhes reservara. Ambos se tornaram pintores e ambos adquiriram renome; Ambos sentiram uma atração natural pela abstração, que se tornou, para um e outro, a fase mais importante e derradeira de suas carreiras.

De dia, comércio, de noite, ateliê
     Tikashi Fukushima nasceu em Fukushima (Hokkaido), Japão, em 19 de janeiro de 1920, e veio para o Brasil em 1940, farejando a entrada de seu país no conflito mundial. Depois de alguns anos no interior de São Paulo, mudou-se para a Capital, abrindo uma molduraria na zona sul, onde, em breve, estaria formando um grupo de pintura, que ficou conhecido como Grupo Guanabara, nome do logradouro onde seu comércio estava instalado.
     Em torno do Grupo Guanabara, se reuniam, além de Fukushima, outros pintores de origem japonesa como Yoshiya Takaoka (1909-1978), Yuji Tamaki (1916-1979), Tomoo Handa (1906-1996),Valter Shigeto Tanaka (1910-1970), Takeshi Suzuki (1908-1987),fb
Hajime Higaki (1908), Kenjiro Massuda (1915-1960) e Jorge Mori (1932). A todos esses, de origem nipônica, juntaram-se alguns «estrangeiros», como Arcangelo Ianelli (1922).
     Quase todos tinham vários pontos em comum: moravam na Vila Mariana, que,  com os bairros contíguos da Liberdade e do Paraíso, formam os grandes redutos japoneses em São Paulo; vieram do Japão como imigrantes e se instalaram como agricultores em várias cidades do interior paulista; todos eram pintores emergentes, de grande talento, mas nenhum havia conseguido, ainda, projeção no cenário artístico.

Era uma cidade diferente
     É claro que uma sociedade de tal natureza só poderia progredir. A oficina de Fukushima (ele e Mori eram os caçulas da turma) de dia fazia molduras, de noite, transformava-se em ateliê. E, nos fins de semana, o grupo saía pelas cercanias em busca de cenários que lhes servissem de inspiração.
     E o que encontravam! Nas décadas de 40 e 50, São Paulo ainda não se tornara a selva de pedras que é hoje. Vila Mariana ainda era um bairro bucólico, com sua estação de bondes, com casas térreas e uma paisagem até bonita. Um pouco mais adiante, o bonde entrava em caminho próprio, a linha da antiga Estrada de Ferro São Paulo-Santo Amaro e virava trem: apitava como trem, tinha estações no lugar de simples paradas e, a cada parada, um pequeno povoado, com chácaras, ruas de terra, árvores, enfim, o campo dentro da cidade.
     O Grupo Guanabara organizou várias exposições até 1959, ano em que se dissolveu e, a partir de então, vários pintores, entre eles Fukushima, passaram a participar das exposições de outro agrupamento da colônia japonesa, o Grupo Seibi, que ainda subsistiria até 1972.

Um teste de qualidade
     Fukushima esteve presente em várias exposições da Bienal de São Paulo, desde sua fundação em 1951; do Salão Nacional de Arte Moderna e do Salão Nacional de Arte Moderna; expôs em outros Estados, como em Belo Horizonte-MG e Curitiba-PR, Salvador-BA; seus quadros viajaram o mundo em exposições, destacando-se a Bienal de Tóquio, em 1963.
     Da arte simplesmente contemplativa, Fukushima foi caminhando rapidamente para o cubismo para, finalmente, mergulhar no abstracionismo, onde se encontra a fase mais importante e mais produtiva de sua obra.
     Segundo o filho, Fukushima, terminado um quadro, fazia seu rastreamento, de cima abaixo e de lado a lado, em busca de senões que pudessem ser corrigidos ou de detalhes que pudessem ser apurados. Quando nada mais achasse, então acrescentava ao quadro um sinal japonês correspondente à letra «i», indicando que o quadro atingira seu maior grau de perfeição.
     A propósito, não confunda o pai, Tikashi, com o filho, Takashi: os nomes são muito parecidos, os dois são pintores, mas há uma distância de uma geração entre um e outro, além do que, cada um abre o próprio caminho a seu momento e a seu modo. Pode-se transmitir às gerações vindouras a técnica da pintura, mas não o modo de ser de um pintor. Este é como uma carteira de identidade: pessoal e intransferível. (Texto de Paulo Victorino)
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Carlos Scliar (1920-2001) - Uma das importantes características de Carlos Scliar era sua capacidade de inovar

«Você sabe de onde eu venho ?»
     Norte da Itália, 8 de maio de 1945. As boas novas explodem como uma bomba e incendeiam os ânimos, nos vários alojamentos dos pracinhas brasileiros, dentro do campo de operações: A guerra acabou!
     Havia uma semana que Adolf Hitler morrera e a Alemanha nazista, com sua capacidade ofensiva minada e sem condições de prosseguir na aventura que, durante cinco anos, ensanguentou o mundo, assinava o armistício, pondo fim a um conflito do qual, nos últimos nove meses, o Brasil participara intensamente.
     As lembranças pesavam e muito. Há exatos 18 dias, nossos pracinhas haviam tomado Montese, um dos últimos redutos alemães na Itália e essa batalha nos custara 34 mortos, 382 feridos e 10 extraviados, e mais baixas ocorreriam nos dias seguintes, na operação de rescaldo, quando foram tomados alguns pontos estratégicos à volta desse sítio. No balanço geral, mais de quinhentos valorosos soldados brasileiros deixaram suas vidas no campo de batalha na defesa de um mundo livre.
     Depois, em 28 de abril, o comando brasileiro aceitava a rendição da 148ª Divisão Alemã e o que ainda restava da Divisão Bersaglieri da Itália. Encurraladas pela fome e sem perspectiva, elas se entregaram, e a FEB fazia, a um só tempo, quase 20 mil prisioneiros, incluindo os dois generais que comandavam as divisões.
«Sem que volte para lá»
     Agora, o pesadelo havia acabado de vez. Neste momento, o Brasil, embora separado da Itália pelo imenso oceano, parecia bem mais perto. O que ainda permanecia longo era o tempo. Os acertos de natureza burocrática, a viagem para Francolise, no Sul do país, em estradas precárias, e a espera dos navios-transporte que zarpariam de Nápoles, ainda tomariam pelo menos dois meses, que eram contados segundo a segundo, numa angústia que parecia nunca cessar.
     Treze de maio. Na suntuosa Catedral de Alessandria se aglomeram oficiais, praças e soldados. Divisas à parte, todos se confraternizam em missa cantada solene, para prestar uma última homenagem aos pracinhas que tombaram em campo de batalha.
     Após o comovente sermão do capelão, e ao som do coral italiano, o marechal Mascarenhas de Morais deposita, em um túmulo simbólico montado junto ao altar, uma coroa de flores, última homenagem daqueles que se iam, para aqueles que não mais voltariam a ver a terra natal.
«Nossa vitória final»
     Nos dias que se seguiram, oficiais superiores participavam de homenagens e banquetes, enquanto praças e soldados foram liberados para visitas a cidades vizinhas e, os que quisessem, poderiam até atravessar a fronteira com a França, não muito distante.
     Um coronel comenta: «Já viu quando se soltam cabritos, depois de uma longa prisão? É a mesma coisa. Passeios, bailes e uma infiltração no meio da italianada.»
     Finalmente, em 6 de julho de 1945, os primeiros 5.000 soldados deixavam o porto de Nápoles pelo navio-transporte «General Meiggs». Outras viagens se seguiriam ainda em julho, utilizando os navios americanos.
     Ao final do mês, os remanescentes  saiam da Itália pelo vapor D. Pedro I e neste contingente se achava o cabo de artilharia Carlos Scliar, saudoso da Pátria, deixando para trás uma porção de amigos italianos, que talvez nunca mais reencontraria e, quem sabe, alguma paixão recolhida, cortada em seu caminho pela força do destino.
     Os que chegaram primeiro cumpriram seu último compromisso oficial. Na tarde de 18 de julho de 1945, os pracinhas brasileiros, com o símbolo da «cobra fumando» estampado nos uniformes, desfilavam pelas ruas cariocas, acompanhados de um pequeno contingente de expedicionários americanos que vieram ao Brasil participar da festa da vitória.
     Depois, a desmobilização. Fechava-se uma página da vida e abria-se outra, na vida civil, onde cada um procurava recolher os salvados de incêndio, para recomeçar a vida no ponto em que ela fora interrompida para atender o chamado da pátria.
Um artista precoce
     Carlos Scliar nasceu em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1920, e faleceu no Rio de Janeiro em 28 de abril de 2001.  De espírito incontrolável, bem cedo na vida revelou sua vocação para a comunicação, o desenho e a pintura. Não tinha mais que 11 anos quando começou a publicar seus primeiros artigos ilustrados e, aos 14 anos,  recebia do pintor austríaco Gustav Epstein as primeiras aulas de arte.
     Em 1935, já em Porto Alegre, após participar da Exposição do Centenário Farroupilha, começou a sentir o mesmo problema que ocorria em todos os centros artísticos do país, qual seja, a luta sem fronteiras entre a arte acadêmica, fechada nos cânones do neoclassicismo e a renovação, que se desenvolvia à margem da Escola de Belas-Artes.
     Nesse ambiente de contestação à arte oficial, em 1938 Scliar participou, com João Fahrion, da fundação da Associação Antônio Francisco Lisboa, da qual foi eleito secretário.
     Depois, foi a São Paulo, juntando-se a Rebolo e aos artistas do Grupo Santa Helena, para participar da exposição da Família Artística Paulista, que era também um movimento de contestação aos acadêmicos.
Recordações da FEB
     Animado com o relativo sucesso obtido pela Família Artística Paulista, em uma mostra realizada no Rio de Janeiro, Scliar inscreve-se no Salão Nacional de Belas Artes, onde conquista medalha de prata.
     Mostrando sua propensão para a gravura e para as artes gráficas, participa da impressão do álbum «35 Litografias», em associação com Aldo Bonadei, Clóvis Graciano, Lívio Abramo e mais outros artistas. Não tardaria em publicar seu próprio álbum, a que deu o título de «Fábulas».
     Em 1943, convocado para a Força Expedicionária Brasileira, seguiu para o Rio de Janeiro e, nessa oportunidade, tomou contato com a pintora Maria Helena Vieira da Silva e seu marido, o pintor Arpad Szenes, que moravam no bairro da Glória e se achavam no Brasil como refugiados de guerra.
     Em 22 de setembro de 1944, segue para a Itália com o 2º Escalão da FEB, comandado pelo general Cordeiro de Farias, e de lá só voltaria, como sabemos, em julho de 1945. Não foi nenhuma viagem de recreio. Ao retornar, trouxe consigo profundas recordações de sua passagem pelos campos de batalha. Orgulhoso da FEB, retratou a si mesmo e a outros companheiros fardados. Observador atento, desenhou casas e imagens do Norte da Itália, formando a série «Com a FEB na Itália», exibida no Rio de Janeiro, em São Paulo e Porto Alegre.
Atividade incessante
     Em 1947,vai à Europa, desta vez, em viagem de estudos,   trabalho e manifestações políticas, percorrendo a França, Itália, Tchecoslováquia, Polônia, Portugal e outros países, com sua atenção voltada particularmente à gravura e às artes gráficas.
     De retorno ao Brasil, inicia uma nova fase de sua carreira, dedicando-se à pintura e à gravura e participando, como artista, das atividades de imprensa. Em Porto Alegre, integrou a equipe que formulou a feição gráfica da revista «Horizonte». No Rio e em São Paulo, participou de outros empreendimentos gráficos, como o lançamento da revista «Senhor». Depois, alternou sua permanência entre Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Ouro Preto.
     Tem participado constantemente de exposições no Brasil e em todos os centros artísticos mundiais, registrando sempre absoluto sucesso. Ativista social, engajou-se em vários movimentos, como o 1º Congresso da Juventude Democrática, na Tchecoslováquia e em manifestações brasileiras, seja produzindo cartazes, seja ilustrando livros e revistas.
     Gravurista por opção, apaixonou-se pela serigrafia, em cuja técnica desenvolveu várias séries. Aliás, uma das importantes características de Carlos Scliar é a sua capacidade de inovar, buscando novos materiais que lhe sirvam de base e técnicas as mais variadas, desde têmpera até o acrílico, passando pelas artes gráficas. Pintou quadros, mas também fez murais e até ilustrou vários bilhetes da Loteria Federal, premiados com sua arte.
     Percorrer a obra de Carlos Scliar é, pois, um saudável e reconfortante passeio pela história da evolução da pintura em nosso país, sendo um programa obrigatório para quem pretenda conhecer o desenvolvimento da arte no Brasil. (Texto de Paulo Victorino).
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Manabu Mabe (1924-1997) - O samurai da pintura

A decisão
     «Vamos passar fome, mas não sei fazer outra coisa. Vou pintar até morrer.» Esta decisão, Manabu Mabe comunicou à sua mulher, Ioshino, logo após a realização de sua primeira individual, na cidade de Lins, Estado de São Paulo, em 1951.
     Mabe chegara ao Brasil com 10 anos de idade, acompanhado do pai, da mãe e de mais sete irmãos, fixando-se todos na cidade de Lins, como colonos, trabalhando na lavoura do café.
     Assim que pode, a família mudou-se para o Jabaquara, bairro ao sul de São Paulo, que,  com Vila Mariana, Paraíso e Liberdade, abrigava a colônia japonesa na capital paulista.
     Em São Paulo, arrumou emprego em uma lavanderia e tinturaria, onde, a meio a seus afazeres habituais, também tingia também gravatas, que levava para casa, pintava, e depois vendia a lojas da cidade.
     Paralelamente, prosseguia em suas experiências com pintura, iniciadas ainda quando trabalhava na lavoura. Embora autodidata, jamais dispensava a orientação de outros artistas mais experientes, cujos ensinamentos, entretanto, não absorvia, mas assimilava, fazendo deles uma leitura própria e aplicando-os segundo seu próprio instinto.
A consagração
     De volta a Lins nesse ano de 1951, para mostrar seus progressos na arte, foi recebido com grande carinho pela população, que o considerava «da terra», como se lá houvesse nascido.
     O Clube Linense cedeu-lhe o espaço para a realização da mostra. A população acorreu para vê-la. O orgulho com que os linenses o receberam, o entusiasmo da colônia japonesa da cidade pelo seu trabalho, o levaram a decidir: abandonaria tudo o mais, para dedicar-se à pintura.
    Não era sua primeira aparição pública. No ano anterior, inscrevera alguns trabalhos no Salão da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Lá, era apenas um dentre muitos pintores, alguns dos quais já consagrados. Aqui, na cidade de Lins, era um destaque, o sucesso no meio de seus patrícios, enfim, a consagração.
     Abandonou tudo para dedicar-se à pintura, mas não passou fome. Passou muitas dificuldades, isto sim, mas, ao fim da carreira, era um dos poucos artistas que podia se dar ao luxo de manter um ateliê em São Paulo, outro em Nova York e um terceiro em Tóquio, revezando-se entre os três e participando de exposições em importantes mostras de todo o mundo.
 Os primeiros tempos
     Manabu Mabe nasceu em Kumamoto Ken (Japão) em 1924 e faleceu em São Paulo (Capital) em 1997. Veio para o Brasil em 1934, acompanhado da família e, após uma pequena estada em Birigui, interior do Estado, todos se fixaram na cidade de Lins, trabalhando como agricultores.
     Sua aproximação com a arte se deu de forma natural, primeiro copiando desenhos de revistas, depois pintando paisagens e naturezas mortas.
     O fato de estar em uma cidade pequena, distante da capital e de outros grandes centros e, mais ainda, com a agravante de viver na zona rural, cerceou-lhe qualquer possibilidade de desenvolvimento na arte, seja adquirindo conhecimentos técnicos indispensáveis mesmo ao autodidata, seja encontrando mercado para sua produção, indispensável para quem pretenda viver dela.
     Essa situação só viria alterar-se após sua mudança para São Paulo, onde, embora vivendo como operário, encontrava a possibilidade de uma comunicação com quem faz arte e com quem procura por ela.
A arte na colônia
     Na Vila Mariana, bem próximo do Jabaquara, onde morava Mabe, ficava a molduraria de Tikashi Fukushima (1920), que ele conhecera, de passagem, ainda na cidade de Lins.
     Ao dia, a loja de Fukushima funcionava na confecção de molduras. À noite, ocorria uma metamorfose. Cavaletes eram instalados e entusiasmados jovens nipônicos ali se encontravam para discutir arte, fazer arte e trocar experiências.
     Outras manifestações culturais se realizavam no bairro que, embora com bolsões de pobreza, abrigava a classe média da cidade, aqueles que ainda não tinham status e suficiência econômica para se fixar nos Jardins (a área nobre), mas tinham renda bastante para para residir em núcleos aprazíveis, misto de casas residenciais e lojas comerciais.
     Assim, os horizontes se abriram para ele e para outros da colônia, em busca de oportunidades para expor seus trabalhos e fazer-se reconhecidos no mundo da arte.
Uma atração irresistível pelo abstrato
     Todos sabem da paciência, da disciplina, e da profundidade filosófica em que se desenvolve toda a educação oriental, a começar de sua escrita, um exercício difícil no aprendizado de caracteres e ideogramas que representa, cada um deles, um trabalho bem acabado de caligrafia.
     Numa tradição que vem de milhares de anos, sua formação volta-se para o interior do ser humano de forma, a mais profunda, num misto de religião e filosofia, aprendendo-se a contemplar cada detalhe da natureza, e a reverenciá-la como a geradora da vida.
     Em sua atividade de pintor, Manabu Mabe não agia como um técnico, mas antes de tudo, como um animal. Não se guiava pelas regras conscientes, mas pelo instinto. Não analisava, apenas dava largas à sua intuição, deixando que esta fluísse normalmente e este é o ponto em que se distinguia dos demais.
     Influenciado por sua educação oriental e agindo instintivamente, não é de surpreender que, aos poucos, fosse ele deixando a pintura figurativa, para se aproximar mais e mais de códigos e sinais, até mergulhar no mais profundo do abstrato. Mesmo em algumas recaídas, quando voltava-se acidentalmente para o figurativismo, este era apenas insinuado, por entre as marcas do abstracionismo,  a cujo estilo permaneceu fiel até a morte.
     Gostava de pintar quadros grandes, não se apegava a miniaturas. Seu quadro «Abstracionismo», acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, possui 181 x 201 cm; a maioria de suas telas têm medidas acima de um metro. Apreciava, pois, espalhar suas ideias em espaços amplos, onde pudesse colocar detalhes importantes, ainda que um olhar comum e menos preparado identificasse ali apenas a monotonia dos elementos.
Bilhete premiado
     O propósito de Mabe, de entregar sua vida à pintura, independentemente das consequências que isso pudesse acarretar, seria um bilhete de loteria ou uma visão transcendental de seu próprio futuro? Ninguém o saberá.
     Se foi um bilhete de loteria, saiu premiado. Após sua histórica decisão, não houve um evento importante de que não participasse e, a partir de então, passou a colecionar prêmios no Brasil e em todo o mundo.
     Em 1959, a 5ª Bienal de São Paulo deu-lhe o prêmio de Melhor Pintor Nacional e, no mesmo ano, num raro acontecimento para brasileiros, ganhou o Prêmio de Pintura na 1ª Bienal de Paris. Seus quadros foram expostos em Buenos Aires, Cidade do México, Kumamoto, Kamamura, Lima, Londres, Miami, Montevidéu, Nova York, Osaka, Paris, Roma e Washington, para citar apenas algumas cidades.
     Sua morte, aos 73 anos de idade, veio interromper uma carreira que ainda se encontrava plena de vitalidade, embora seu trabalho  se fixasse a um    estilo definitivo que não mais abandonaria. (Texto de Paulo Victorino) 
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Ado Malagoli (1906-1994) - Foi um missionário das artes, levando seus conhecimentos ao rincão gaúcho

O enjeitado

     «Jovens, pobres, românticos e inconformistas» era o perfil dos incipientes artistas filiados ao Núcleo Bernardelli do Rio de Janeiro, segundo depoimento de seu fundador, Edson Mota. Tendo se manifestado como o primeiro grupo de contestação à arte oficial ensinada pela Escola Nacional de Belas-Artes (mas sem romper com ela), este grupo que, em boa hora, recebeu o apoio e orientação do mestre Manuel Santiago, criou uma base sólida na arte moderna, revelando, com o tempo, grandes nomes da pintura brasileira.

     Entre esses rebeldes encontrava-se Ado Malagoli, nascido em Araraquara, Estado de São Paulo, em 1906 e falecido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1994, encaixando-se por completo na descrição de Mota.

     Os pais faltaram-lhe bem cedo na vida e, órfão, Malagoli foi trazido para a casa de parentes em São Paulo aos oito anos, passando a trabalhar numa serralharia, enquanto concluía o curso primário, naquela época de apenas quatro anos.

     Se, de um lado, o trabalho infantil lhe foi um peso, de outro, deu-lhe estrutura para, aos 13 anos, matricular-se em uma escola profissionalizante, vencendo facilmente os exames de admissão. Depois, conseguiu vaga para prosseguir os estudos no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.

O aprendiz

     Aproximar-se do Liceu era achegar-se ao mundo das artes e não tardou em tomar contato com os pintores que formariam, em São Paulo, o Grupo Santa Helena, como Rebolo, Zanini e Volpi. Com Rebolo, mais experiente e assentado no ramo, executou alguns trabalhos profissionais de decoração; com os outros dois, saia pela cidade, em busca de lugares onde pudesse assentar o cavalete e exercitar sua pintura.

     No início dos anos 30, mudou-se para o Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola Nacional de Belas Artes, e foi nessa oportunidade se uniu a outros estudantes como ele, participando, então da formação do Núcleo Bernardelli com oportunidade inédita de receber aulas de Manuel Santiago, professor da Escola, mas que dispôs-se a orientar pessoalmente aqueles moços, dando direção e sentido à sua rebeldia.

     A partir de 1934, passou a expor suas obras nos Salões anuais da Escola Nacional de Belas Artes, ganhando alguns prêmios menores, até que, em 1942, recebeu o cobiçado prêmio de viagem ao exterior, o que lhe permitiu permanecer três anos nos Estados Unidos, aperfeiçoando sua arte. Lá, também, teve a oportunidade de realizar sua primeira individual que, se não foi um sucesso, permitiu-lhe marcar presença em um país estrangeiro, cuja concorrência entre artistas era enorme.

O mestre

     De volta ao Brasil, foi professor no Rio de Janeiro, mas por pouco tempo, já que recebeu um convite irrecusável, vindo de Porto Alegre, para fazer parte do corpo docente do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul.

     Esse convite, em boa hora aceito, preenchia as aspirações de Malagoli. Pouco dado a aventuras, era o momento de se fixar em um trabalho firme e, de fato, naquela escola, permaneceu como professor até sua aposentadoria, em 1976. Por outro lado, comunicativo, encontrava nesse trabalho a oportunidade de transferir seus conhecimentos a outros jovens iniciantes, num Estado onde a arte seguia cambaleante, pela distância dos dois grandes centros de irradiação, que eram Rio de Janeiro e São Paulo.

     Na contrapartida, Ado Malagoli foi vítima, também, desse voluntário ostracismo, que lhe refreou os progressos e conteve sua arte, caracterizada por um apego ao academicismo que procurou condenar no Núcleo Bernardelli. Pela falta de convívio com os grandes centros da arte no Brasil, sua produção distanciou-se da de seus antigos companheiros, como Dacosta e Pancetti, por exemplo, que, estes sim, plasmaram sua arte num estilo próprio e inconfundível.

     Este detalhe, todavia, não anula a beleza de seus quadros. E ainda, mais do que pintor, e o foi com qualidade, Malagotti portou-se como um missionário das artes, levando seus conhecimentos ao rincão gaúcho, onde trabalhou por três décadas seguidas na formação de novos artistas no extremo Sul do país. (Texto de Paulo Victorino)

Joaquim Tenreiro (1906-1992) - Pintor e moveleiro, em tudo ele era um artista consagrado

Um artífice chega ao Brasil
     Joaquim Tenreiro nasceu no ano de 1906 em Melo (Portugal) e faleceu em Itapira (SP) em 1992.
     Filho de um marceneiro, aos nove anos começou a mexer com ferramentas na oficina do pai, ajudando-o em pequenos trabalhos e adquirindo assim, desde pequeno, a habilidade artesanal e a familiaridade com a madeira que caracterizariam seu fazer adulto.
     Tenreiro já conhecia o Brasil. Trazido pelos pais, viveu aqui em dois períodos, dos 3 aos 7 anos e, depois, dos 19 aos 20 anos.
     Mais tarde, já casado, decidiu emigrar de vez para o Rio de Janeiro, onde a princípio ganhou a vida como carpinteiro.

Iniciando-se na pintura
     Em 1929 matriculou-se num curso de desenho mantido pelo Liceu Literário Português e, dois anos mais tarde, seria dos membros mais ativos do recém fundado Núcleo Bernardelli.
     Todos seus estudos, nessa fase, estavam ligados ao desenho. Só começou a pintar em 1935 ou 1936, até porque - como diria anos mais tarde a Frederico Morais -, "telas e tintas custavam dinheiro e este era curto".
Ganhando a vida como decorador
     Enquanto aprimorava suas aptidões artísticas, Tenreiro ia adquirindo boa reputação como designer, trabalhando de 1933 a 1943 em firmas como a Laubisch & Hirth, a Leandro Martins ou a Francisco Gomes, especializadas em fornecer móveis imitativos dos velhos estilos franceses, italianos, portugueses e de outras origens.
      Era a coqueluche da época, ter um móvel estilizado. "Luizes de todos os números e renascimentos tardos de 400 anos", como diria numa entrevista em 1975.
     Desde 1934 desenhava, a título experimental, bufês e outros móveis de linhas já não tradicionais, que por isso mesmo não achavam comprador.
Móveis em estilo tupiniquim
     Em 1941, veio a grande mudança, ainda quando ainda trabalhava na Laubisch & Hirth. Atendendo uma encomenda, projetou para a casa do médico e colecionador Francisco Inácio Peixoto, em Cataguases, os primeiros autênticos tenreiros.
     Surgiram, então, os móveis inteiramente concebidos, projetados e executados por ele, e admiráveis pela sobriedade e beleza da forma e pela sábia utilização das preciosas madeiras brasileiras, combinadas entre si, ou a têxteis especialmente criados por artistas plásticos de renome.
     Para realizar tais móveis, Tenreiro debruçou-se atavicamente sobre a sua ancestralidade lusitana, responsável em séculos idos pelo surgimento de tantas obras-primas de singeleza e funcionalidade, e não em jornais e livros estrangeiros de Design, que sequer os havia no Brasil quando começou.
Da ideia nasceu uma empresa
     Já em 1943 Tenreiro montara no velho Centro do Rio sua primeira loja-oficina - a Langebach e Tenreiro Ltda. Em 1947 abriu loja na então elegante Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, transferindo-a em 1962 para a Praça General Osório em Ipanema.
     Por volta de 1953, os negócios iam tão bem que foi necessário abrir filial em São Paulo.
     No ano seguinte a primitiva oficina da Rua da Conceição ficara pequena e tinha de ser trocada pela espaçosa fábrica em Bonsucesso, na qual, num dado momento, chegaram a trabalhar 100 artesãos.
O alto preço do sucesso
     A despeito porém do reconhecimento profissional e da conseqüente retribuição material, ou por causa dela, Tenreiro se sentia infeliz.
     Não lhe davam trégua. Eram traições e disputas internas, ódios e mesquinharias que tornavam-lhe a vida quase insuportável.
     Assim foi que em 1967, após entregar sua última encomenda - a decoração do salão de banquetes do Palácio Itamaraty em Brasília -, Tenreiro reavaliou se valia pagar tanto pelo sucesso obtido.
Numa opção consciente, resolveu, de uma vez por todas, fechar oficina e lojas para, de então por diante, dedicar-se exclusivamente às artes plásticas, retomando assim um caminho havia muito interrompido.
De volta às artes plásticas
     Liberado de seu compromisso com o Desenho Industrial, a partir de 1967, e por mais de 20 anos, Tenreiro retoma a pintura e, principalmente, faz relevos e objetos em madeira.
     Desse momento final, surgiu uma longa série de individuais, retrospectivas, premiações e homenagens especiais.
    Segue-se a execução de grandes obras, como, em 1969, o painel   para a Sinagoga Templo Sidon na Tijuca, a portada da Capela Ecumênica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de 1974, ou os dois painéis em fibra de vidro, cada um medindo oito por seis metros, realizados em 1975 para o novo auditório do SENAI na Tijuca.
     Como se percebe, nessa fase final não seria com pinturas, mas como escultor, que o artista mais se destacou, produzindo relevos, treliças e colunas em madeira policromada que constituem algo de novo na arte brasileira de então.
Lembrando Guignard
     Como pintor - atividade que desenvolveu principalmente na década de 1940 - sua contribuição não deve ser de modo algum subestimada. Praticava então a paisagem, o retrato, o autorretrato e a natureza-morta.
     Seu desenho era particularmente sensível, chegando a evocar de perto o de Guignard e de um colorido expressivo.
     Nas paisagens, principalmente, revela-se mais pessoal, sobretudo quando utilizava, em poéticas evocações, do casario e da vegetação de Santa Teresa e de outros bairros pitorescos do Rio de Janeiro, ou das cidades históricas de Minas, um esquema peculiar de composição, consistindo em observar a cena desde o alto e à distância, enfocando-a, como no visor de uma câmera fotográfica, em cortes inusuais e audaciosas sucessões de planos.
     A cor, nessas paisagens, é a tonal, atmosférica, e a impressão transmitida é de serenidade e equilíbrio.
     Já nos retratos e figuras predomina a marca de Guignard, inclusive nos cortes composicionais, o mesmo podendo ser dito das naturezas-mortas, algumas, exemplo de despojamento formal.
A inconstância prejudica a avaliação de sua obra
     Prejudicada pelo sucesso obtido com seu mobiliário, até praticamente cessar na segunda metade dos anos 40, a atividade de Tenreiro, enquanto artista plástico, reaparecerá a intervalos, de então até os anos 60.
     Assim, em 1946 e 1949 realizou individuais no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1960 recebeu menção honrosa em Desenho no Salão Nacional de Arte Moderna, e em 1965 participou da VIII Bienal de São Paulo com relevos taxeados e óleos sobre neoplan da série Ciclistas, tema recorrente em sua produção.
     Postumamente a contribuição, tanto do designer quanto do artista, tem sido exaltada, aquela com ênfase compreensivelmente maior, em retrospectivas como a de 1998 no Museu de Arte Contemporânea de Niterói.

Aurélio D'Alincourt (1919-1990) - Viajar pelos seus quadros é como realizar um passeio pelos mais profundos recônditos do ser humano.

Posando de Menino-Deus
     O pimpolho estava completando exatamente seus oito meses quando recebeu uma visita importante, a de sua prima Josefina de Vasconcelos, que viajara da Inglaterra ao Rio de Janeiro só para conhecê-lo.
     Josefina era escultora de talento e já com tradição na Europa. Embora inglesa de nascimento, vivera no Rio de Janeiro, onde teve oportunidade de estudar com Rodolfo Bernardelli, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes e, na época, o mais importante referencial em escultura no Brasil.
     Tanto ela quanto o menino pertenciam à família Hermes da Fonseca, da qual saíram dois presidentes da República, além de vários políticos e militares, principalmente do Rio Grande do Sul e de Alagoas.
     O encontro entre ambos revelou a presença de almas gêmeas. A artista e o garoto demonstraram uma forte atração um pelo outro e ela passou uma parte de seu tempo retratando o primo, em dezenas de esboços que, ao retorno, levou consigo para a Inglaterra.
     Em seu país, já a esperava uma encomenda de   escultura com a virgem e o menino, que deveria ser colocada, em caráter permanente, na Catedral de São Paulo.
     Josefina não teve dúvidas: usou os esboços que trouxera do Rio de Janeiro para esculpir o menino Jesus nos braços de Maria, uma imagem que até hoje se acha naquela catedral.
     Foi assim que, já nos primeiros meses de vida, Aurélio D’Alincourt ingressou no mundo das artes, involuntariamente, posando de Menino-Deus.
O chamado da Pátria
     Aurélio D’Alincourt nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1919 e faleceu na mesma cidade, em 1990.
     Descendente de família influente e morando em Copacabana, teve uma infância privilegiada, que lhe permitiu desenvolver bem suas aptidões em vários campos de atividade, e não apenas no desenho artístico.
     Com efeito, sua primeira experiência profissional, aos 19 anos, deu-se como cartógrafo, na Prefeitura do Rio de Janeiro. Esse emprego estatal, ele o conservou pela vida afora, até a aposentadoria.
     Poucos anos depois, o Brasil entraria na Segunda Guerra Mundial, declarando guerra à Alemanha e preparando uma força expedicionária para atuar nos campos da Itália. Reservista de 1ª Categoria, esteve perto de ser convocado, mas, por capricho do destino, foi seu irmão Afonso que seguiu para a batalha, atendendo ao chamado da pátria.
     Entusiasmado, porém, como os jovens de sua época, pela causa da liberdade, D’Alincourt, após insistentes apelos, acabou por aceitar uma incumbência que lhe dera a revista Opinião, para a qual passou a fazer gravuras, ressaltando a bravura de nossos soldados, ou representando cenas de guerra.
     Duas importantes decisões mudariam sua vida naquele momento. A primeira foi a de procurar o pintor Osvaldo Teixeira, cujo ateliê passou a frequentar. A segunda, igualmente ajuizada, foi a de constituir família, casando-se com Lia Jansen de Melo, que se tornou a mãe de seus quatro filhos, Marília, Luís Eduardo, Ângela e Marco Aurélio.
Quando a arte fala mais forte
     Nessa altura dos acontecimentos, se dúvidas houve, no passado, com relação à sua vocação para a pintura, todas elas já haviam se dissipado inteiramente. Num estágio mais avançado, começou a receber aulas de Carlos Chambeland, um veterano da pintura, ligado à Escola Nacional de Belas-Artes.
     Paralelamente, passou a se inscrever, sistematicamente, nos Salões que aquela academia realizava nos finais de ano e, já em 1945, conseguia Menção Honrosa com o quadro Retrato de Jenny. Dois anos depois, recebia a Medalha de Bronze com a obra Retrato de Sara Vilela e, no ano seguinte, deu um novo avanço, ao conquistar a Medalha de Prata com o Retrato de Elisa Seelinger.
     A grande e rara oportunidade surge no Salão de 1951, quando conquista o Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro Crítica Sentimental, onde capta, com extrema sensibilidade, o olhar distante da retratada, Inara Barcelo Cruz e, completando o quadro, coloca a si mesmo, com a paleta na mão esquerda, contemplando o modelo.
Um prêmio cheio de contratempos
     No ano seguinte, D’Alincourt embarca para a Europa, com um plano de viagem e de estudos muito bem detalhado, levando consigo a esposa Lia, assim como os filhos Marília, Luís Eduardo e Angela.
     Neste empreendimento, nem tudo deu tão certo quanto fora planejado. Primeiro, as dificuldades em conseguir alojamento, dado às restrições feitas a casais com filhos. Em breve teriam de sair do apartamento que alugaram, para ir morar em um hotel, até que uma nova moradia fosse encontrada.
     Pelo final do ano, um outono tempestuoso prenuncia a chegada de um inverno que será ainda mais rigoroso. As crianças, pouco afeitas ao clima, em breve adoecem e, para completar o quadro, a mulher fica grávida do quarto filho.
     Aurélio não tem dúvidas e, para garantir o bem-estar da família, cancela as viagens programadas para Itália, Holanda e Espanha, retornando todos ao Rio de Janeiro.
     É difícil descrever o clima em que foi recebido pelas autoridades ligadas ao Ministério da Cultura.  O prêmio lhe fora creditado na totalidade para cumprir inteiramente o roteiro e, havendo interrompido a viagem, o Museu Nacional exigia a devolução de parte do dinheiro.
     A visão do pintor era outra. O prêmio foi concedido pelo quadro que, de acordo com o regulamento, passou a pertencer definitivamente ao Museu, completando-se, com essa operação, a realização de um contrato perfeito e acabado, nada mais sendo devido por qualquer das partes.
     Após longas discussões, chegou-se a uma solução de consenso: D’Alincourt voltaria a viajar, desta vez sozinho, para Nova York, onde completaria seu período de estágio, voltando ao Brasil, meses depois, com sua situação regularizada.
Mudança de rumos
     Os acontecimentos que se seguiram, durante toda a década de 50, alteraram por completo os rumos de sua vida. A revista O Cruzeiro necessitava de um gravurista para ilustrar as histórias de amor que publicava e encontrou em D’Alincourt o homem que procurava.
     O Instituto de Belas-Artes do Rio de Janeiro estava buscando por um professor para aulas com modelos e o pintor aceitou o emprego, atendendo a um apelo de seus amigos Leão Veloso e Augusto Seabra.
     No convívio diário com belas e jovens estudantes, D’Alincourt veio a se apaixonar por uma de suas alunas, Heloisa Brito Machado, com quem passou a viver, e de quem somente a morte conseguiu separá-lo.
     O sucesso torna-se uma imposição de sua própria carreira e os prêmios se sucedem através dos anos. Suas filhas Marília e Ângela resolvem seguir a carreira do pai, o que representa um incentivo mútuo.
     Um vasto e acolhedor ateliê é montado na Rua Senador Vergueiro, onde o pintor se instala em definitivo. É uma carreira sem mais sustos ou percalços e a própria variação financeira, comum na vida de um pintor, pôde ser contrabalançada com a renda fixa de duas aposentadorias, a do serviço público e a do Instituto de Belas-Artes.
O humanismo sempre presente
     Uma das características marcantes na obra de Aurélio D’Alincourt é o academicismo que sempre o acompanhou, mesmo quando fez algumas concessões à arte moderna.
     A outra, consequente, é o profundo apego do pintor aos seres humanos, colocando em segundo plano as paisagens, marinhas e naturezas mortas, para se fixar quase que tão somente na beleza e expressividade do corpo humano.
     Essa opção, ele a demonstrou, com rara felicidade, nos retratos, nos nus, nas maternidades. Como os renascentistas, ele colocou ser humano (leia-se: a mulher) no centro de seu universo, buscando desnudá-lo, não apenas no corpo, mas sobretudo na alma, refletida nas expressões faciais dos personagens.
     Viajar pelos quadros de D’Alincourt é, pois, como realizar um passeio pelos mais profundos recônditos do ser humano. Senão por outras razões mais, esta é uma característica que o distingue dos demais pintores de sua geração. (Texto de Paulo Victorino)
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Emeric Marcier (1916-1990) - Veio fugindo da guerra e deu aulas a Djanira, em troca de casa e comida

     Emeric Marcier nasceu em Cluj, na Romênia, em 1916, falecendo em Paris, no ano de 1990. Embora fazendo freqüentes viagens à Europa, passou a maior parte de sua vida na cidade do Rio de Janeiro e em Barbacena, Estado de Minas Gerais.
     Marcier faz parte daquela leva de pintores, escultores, escritores e cientistas que aportaram ao Rio de Janeiro, a partir de 1940, em conseqüência da 2ª Guerra Mundial, iniciada um ano antes.
     Por algum tempo, viveu na Pensão Mauá, no morro de Santa Teresa, sendo pensionista de Djanira, que lhe dava comida e acomodações em troca de aulas de pintura.
     Em 1947, quando outros refugiados, como Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, voltavam à Europa, Marcier preferiu ficar no Brasil, tornando firme essa decisão ao conhecer a cidade de Barbacena, ao Sul de Minas Gerais, que se tornou modelo para suas paisagens. Artista bem solicitado, manteve residência, alternadamente em Barbacena e Rio de Janeiro, com algumas escapadas a Paris.
     Emeric Marcier não era abertamente um modernista, sofrendo por toda vida a influência dos primeiros mestres em Milão, aos 19 anos, quando tomou contato com a pintura italiana do pré-renascentismo.
     Assim, sua arte estava muito presa à pintura religiosa e muitos de seus trabalhos, em murais, eram realizados ainda pela técnica do afresco. Não eram porém uma cópia da obra dos antigos mestres, muito pelo contrário, sua pintura tinha um toque especial, pessoal, nada acadêmica, revelando aproximação ao modernismo e plena assimilação da pintura do século 20.
     Em sua carreira, não se fixou particularmente em nenhum gênero: apreciava a pintura religiosa, não menos que a paisagem; pintava naturezas mortas, mas fazia também retratos, aos quais chamava de «paisagens de gente»; ousava experimentar, sem entretanto abandonar por completo a experiência anterior já sedimentada. Em resumo, era um renovador mas não um iconoclasta; o novo não representava, para ele, a destruição do velho.
     Entre todos os refugiados de guerra que passaram pelo Brasil, Marcier teve características pessoais que o diferenciaram: judeu por nascimento, converteu-se ao catolicismo, fazendo da pintura religiosa uma vertente importante de sua obra; romeno por nacionalidade, naturalizou-se brasileiro, abraçando por completo a nova cidadania; dependente da Europa para manter-se como um pintor internacional, nem por isso deixou o Brasil, que considerava sua residência permanente. Aqui se casou, aqui nasceram seus filhos e um deles, Jorge Tobias Marcier (1948-1982) tornou-se pintor, como o pai. (Texto de Paulo Victorino)
Emeric  Marcier  na Bolsa de Arte-RJ

Bustamante Sá (1907-1988) - Pintores há muitos, mas mestres são poucos, constituindo-se em pérolas de grande valor.

O aluno que aprendeu
mais do que devia
     Fazendo renascer os velhos tempos, quando João Jorge Grimm, tal como os pintores de Barbizon, levava seus alunos para colher imagens no campo, Bustamante Sá também criou uma escola ao ar-livre, onde ensinava paisagem a principiantes, que nada entendiam de desenho nem da arte da pintura.
     Alguns de seus alunos se desenvolviam com extrema rapidez, outros nem tanto. Um aluno havia que não conseguia se encontrar com a tela e, com infinita paciência, o professor lhe tomava o lápis, desenvolvendo o esboço à sua frente.
     Depois, como os borrões de tinta que o moço punha sobre a tela mais pareciam pedaços de goiabada cascão, Bustamante, bem intencionado, lhe tomava o pincel, fazendo acertos e modificações, na esperança de que no correr do tempo, ele encontrasse seu próprio caminho.
     Um dia, Bustamante Sá foi a um moldureiro encomendar um trabalho e, com surpresa, encontrou lá, para ser enquadrado em fina moldura, um dos quadros que ajudara o aluno a pintar.
     Só então descobriu a farsa: o aluno, mais esperto do que parecia, levava o professor a pintar o quadro, quase inteiro, e depois o vendia a colecionadores como sendo um legítimo Bustamante Sá.
    Desde esse momento, e para sempre, o pintor jamais voltou a colocar sua mão nos trabalhos de qualquer aluno.

Preparando o caminho
     Rubem Fortes Bustamante Sá nasceu no Rio de Janeiro em 1907 e faleceu na mesma cidade em 1988.
     Estudou na Escola Nacional de Belas-Artes como aluno de Rodolfo Amoedo e Rodolfo Chambelland e foi, em 1931, um dos fundadores do Núcleo Bernardelli.
     Desde 1928 passou a expor no Salão Nacional de Belas- Artes, no qual conquistou seguidas marcas, como:
  • menção honrosa (1933);
  • medalha de bronze (1934);
  • medalha de prata (1936);
  • prêmio de viagem ao país (1938);
  • prêmio de viagem ao estrangeiro (1949).
     Participou ainda com destaque de diversas outras mostras coletivas no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia e no Rio Grande do Sul, sempre obtendo premiações.
Um reconhecimento que
tarda, mas chega
     De 1950 a 1952 esteve na Europa, aperfeiçoando-se, então, na Academia Julian, de Paris, sob a orientação de André Planson.
     Ao retornar de viagem realizou uma individual no Salão Assírio, do Rio de Janeiro (1952), passando também a se dedicar ao magistério, na Escola Fluminense de Belas-Artes, na Associação Brasileira de Desenho e no Instituto Nacional de Educação de Surdos.
     Somente em 1977 realizaria nova individual, após 25 anos em que sua arte esteve marginalizada. Desde então, sucederam-se as exposições, que contribuíram para transformá-lo em pintor de renome.
Ao mestre, com carinho
     Rubem Fortes Bustamante Sá formou o trinômio da pintura carioca ao lado de seus companheiros de ateliê, José Pancetti e Sílvio Pinto, constituindo-se eles os grandes nomes da pintura no Rio de Janeiro.
     Tamanha era a aproximação dos três artistas que, em alguns momentos, o estilo de um chegava a confundir-se com o dos outros dois, como se a obra tivesse sido executada a seis mãos.
     Virtuoses sem par, cada um deles deu uma contribuição diferente à arte no Rio de Janeiro. A de Bustamante Sá, muito além da própria pintura, se eternizou pela sua vocação manifesta ao ensino, levando pela mão jovens principiantes, às vezes nem de grande talento, incentivando-os a persistirem no aprendizado do desenho e da pintura.
     Participante do Núcleo Bernardelli, permaneceu nele por vários anos, depois que seus fundadores, cada um por seu próprio motivo, se afastaram. A ele se deve o prolongamento do núcleo até a década de 40, contribuindo para a formação de muitos artistas.
     Paralelamente, desenvolvia outras atividades de ensino e ainda lhe sobrava tempo para manter uma escola de pintura paisagística ao ar-livre, responsável também pela formação de vários artistas.
     Pintores há muitos, mas mestres são poucos, constituindo-se em pérolas de grande valor. Bustamante Sá se insere entre os grandes mestres e  esta dedicação, mais que sua pintura, torna seu nome importante entre os grandes artistas que habitaram a cidade maravilhosa. (Texto de Paulo Victorino)
Fontes: CD-Rom «500 Anos de Pintura Brasileira»; «A Pintura de Bustamante Sá», de Quirino Campofiorito.
           IMAGENS

Milton Dacosta (1915-1988) - Um dos "lambuzões" do Grupo Bernardelli

A arte ao alcance de todos

     Era uma acanhada sala, no primeiro andar de um velho sobrado da rua São José, no Rio de Janeiro, em cujo térreo funcionava a loja da Casa Cavalier.

     No canto esquerdo, um modelo vivo. Pela sala, espalhavam-se, como podiam, jovens alunos de pintura, dois ou três com cavaletes, os restantes com prancha de desenho, cada um buscando um melhor ângulo para reproduzir o corpo nu, diante de si.

     Nada de professores. Era o Núcleo Bernardelli que se reunia, todas as noites no mesmo local, contestando o ensino tradicional, especialmente a Escola Nacional de Belas Artes, perdida nas sombras do passado, a ensinar, em plena década de 30, a pintura romântica e neoclássica, minando qualquer iniciativa pela modernização da arte.

     Aqui, a pintura era livre, ninguém obedecia a métodos ou técnicas prefixados. Cada um pintava como queria, dava largas à imaginação, numa luta sem tréguas entre tintas e pincéis, que tentavam conciliar-se, sem resultados patentes.

     Entre os experimentadores da arte livre, estavam o marinheiro José Pancetti (1902-1958), Ado Malagoli (1906-1994)  Milton Dacosta (1915-1988) e, é claro, o fundador do núcleo, Edson Mota (1910-1981).
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 O veredicto do mestre

     Trabalho pronto, perfeito e acabado, foi convidado um «expert» para dar suas impressões sobre a evolução daqueles jovens aspirantes. O mestre era Manuel Santiago (1897-1987), na plenitude de seus 37 anos, mas já com uma respeitável bagagem, tendo participado de várias exposições no Brasil e na França, onde esteve, aproveitando um premio de viagem conquistado em 1927 no salão da Escola Nacional de Belas Artes. Uma autoridade e tanto para avaliar as possibilidades daqueles ansiosos jovens.

     Santiago caminhou, atônico, pelos quadros que lhe foram expostos, quase não acreditando no que via, examinando e reavaliando cada um, para se certificar de que não era um sonho, mas sim a realidade do trabalho executado por cada um dos participantes do Grupo.

     «O que eles fazem é uma goiabada da mais ordinária, pensando serem independentes e terem personalidade» - escreve ele, mais tarde, à sua mulher, a pintora Haydea Santiago (1896-1980). É uma crítica pesada, mas corrige-se, em seguida, aclarando o pensamento:

     «Fiquei querendo bem a esta turma de "barbouilleurs" (lambuzões) e penso que vou dedicar-me inteiramente a eles, pois mostram ter força de vontade e precisam de um bom amigo, mais velho, para fazer deles ótimos pintores.»
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Os progressos de um «lambuzão»

    Milton Dacosta, um dos «barbouilleurs» a que se referia Santiago, nasceu em Niteroi, Estado do Rio de Janeiro, em 1915, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1988, demonstrando atração para o desenho desde a infância, quando fazia seus rabiscos sobre qualquer material que estivesse ao seu alcance, como caixas de sapatos, pedaços de papelão e o que mais fosse.

     Aos 14 anos, conheceu um professor alemão, Augusto Hantz, com quem tomou as primeiras aulas e, no ano seguinte, matriculou-se no curso livre que era ministrado por Augusto José Marques Júnior (1860-1937) na Escola Nacional de Belas Artes.

     Não era isso o que queria e, aos 16 anos, participou da fundação do Núcleo Bernardelli, um projeto equivocado, mas que foi a primeira fase para a libertar sua pintura dos cânones acadêmicos.
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 O Salão abre suas portas

     Em 1936, após realizar uma individual, que alcançou relativo sucesso, Dacosta sentiu-se incentivado a tentar, uma vez mais, inscrever-se no Salão Nacional de Belas Artes.

     Na tentativa anterior, saiu-se frustrado, pois seus quadros não só foram recusados pelo Salão como ridicularizados. Desta vez, porém, não só expôs, como recebeu menção honrosa, uma indicação de que os acadêmicos, refratários a mudanças, começavam a fazer concessões aos novos pintores.

     Isso se tornou mais patente nas exposições seguintes, quando ganhou medalha de bronze, de prata e, em 1944, o cobiçado prêmio de viagem ao exterior. Foi assim que, em 1945, viajou para os Estados Unidos, em companhia da pintora Djanira e, de lá, seguiu para a Europa, ficando em Paris por dois anos.
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 Evolução gradual e segura

     A pintura de Dacosta já não era a mesma, desde os primeiros rabiscos de sua infância e os borrões em livre estilo praticados na primeira fase do núcleo Bernardelli. Dacosta evoluiu, mas evoluiu gradativamente, degrau a degrau, sem queimar etapas.

     Em seus primeiros momentos, como costuma acontecer aos principiantes, sentiu uma atração irresistível pelo Impressionismo, caminhando seqüencialmente para o Expressionismo, o Cubismo, o Concretismo, voltando por fim ao Cubismo, como opção definitiva.

     Milton Dacosta casou-se, em 1949 com a pintora Maria Leontina, um casamento que durou 37 anos e só se extinguiu com a morte dela, em 1984. Juntos percorreram o caminho da vida e o caminho da arte, participaram de Bienais, viajaram ao exterior em cursos de aperfeiçoamento, serviram de suporte um ao outro, crescendo juntos na missão que escolheram, de tornar o mundo mais belo.

      Quatro anos após a viuvez, morre também Dacosta, quando vivia a fase mais importante de sua pintura, numa série que ele denominou como «Vênus e os Pássaros».

     Comparando-se os quadros pintados a partir de 1963, dentro dessa série, com as pinturas feitas na década de 40, percebe-se que a ingenuidade dos traços e do colorido deu lugar à maturidade do artista, onde a forma se sobrepõe à cor, onde o apuro de estilo, com sobriedade e elegância, domina o quadro em sua totalidade.  (Texto de Paulo Victorino)
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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Alfredo Volpi (1896-1988) - Um dos ícones do Grupo Santa Helena, não gostava de rótulos nem de homenagens

O artista e a paisagem
     De um lado o mar, vasto mar da Praia Grande, sem contornos, bravio, devorando a praia a cada ressaca, para depois, deixá-la, transformando a areia úmida em uma pista tão dura quanto o concreto, servindo, pois, de estrada natural, que ligava os pequenos vilarejos do litoral Sul do Estado de São Paulo.
     No lado oposto ao mar, lá estava a mata atlântica, fechada, intransponível, estendendo-se numa planície que morria frente a um enorme paredão, a serra do Mar, no alto da qual ficava a capital paulista.
     Felizmente, a maré estava baixa, e o pequeno ônibus, conhecido entre os da terra como «jardineira», engolia o caminho à sua frente, diminuindo, pouco a pouco, a distância que os separava do lugar de destino, a pequena cidade de Conceição de Itanhaém.
     Dentro da «jardineira», entre outros passageiros, um homem, já nos seus 40 anos, levando consigo um cavalete e uma maleta com toda a tralha de pintura: pincéis, tintas e algumas telas, que muitas não poderia levar, por falta de espaço. Levava, também, alguns cartões para pintura e, na falta de qualquer base para seus quadros, arrumaria o que mais conseguisse na cidade, madeira principalmente, que era mais fácil de ser encontrada.
     Itanhaém, neste ano de 1927, era uma cidade isolada e misteriosa, por onde, segundo a tradição - mas sem comprovação histórica - teria caminhado o padre José de Anchieta, apóstolo dos indígenas. E, neste ano, acabara de falecer um de seus mais ilustres cidadãos, o pintor Benedito Calixto de Jesus  (1853-1927), que imortalizou, em suas telas, as mais belas paisagens do litoral paulista.
     Agora, naquele ônibus sacolejante e barulhento, seguia outro pintor, o brasileiríssimo italiano Alfredo Volpi, ansioso por desvendar os mistérios daquela cidade litorânea e transportá-los para suas telas ou, na falta destas, para qualquer outro material que estivesse ao seu alcance.

Itanhaém, aqui estamos
     A cidade onde chegou, após horas de viagem, não o decepcionou. Subiu à colina e contemplou, com olhos de artista, a igreja seiscentista reconstruída após um incêndio, este causado pela imprudência de um frade, ao usar tochas para desalojar os morcegos que se escondiam no telhado do templo.
     De lá, no alto do morro, a vista era ampla e ia até onde os olhos pudessem alcançar. Dos fundos da igreja, podia-se avistar a desembocadura do rio Itanhaém, onde pescadores arrumavam suas redes; bem próximo, alguns barcos de pesca. Ao mar alto, alguns vapores, fazendo o serviço costeiro, transportando por água as mercadorias que, devido à falta de estradas, não tinham condições de seguir por rodovia.
     Volpi pintou. Pintou com entusiasmo, com paixão, com pressa, como se a paisagem fosse volatilizar a qualquer momento, urgindo que a tivesse fixada nas suas telas, antes que tal acontecesse.
     Foi aí que surgiu a fase marinha de Volpi que, se não foi a mais importante de sua vida, deixou registros que só encontrariam paralelo anos mais tarde, quando, no mesmo local, se instalaria o marinheiro José Pancetti (1902-1958), o qual, na mesma quantidade e com a mesma qualidade, registrou as inesgotáveis belezas naturais daquela cidade, distante quarenta quilômetros de Santos, comprimida entre o mar e a montanha (veja a Itanhaém de Pancetti).

Quando toda profissão era arte
     Alfredo Volpi nasceu em Luca, na Itália, em 1896 e faleceu em São Paulo em 1988. Embora tenha vindo ao Brasil, com seus pais, com apenas um ano e meio, e ainda que tornando-se o mais brasileiro entre todos estrangeiros, jamais naturalizou-se, usando até a morte a cidadania italiana e mantendo-se fortemente ligado à Itália, não apenas por laços de sangue, mas por uma admiração muito grande -- podemos dizer até, babosa -- pelos mestres pintores de sua terra natal.
      Sua vida no Brasil não foi fácil. Filho de operários imigrantes, operário também se tornou. Numa época em que toda profissão tinha um toque de arte, tentou a vida como carpinteiro, entalhador de móveis, encadernador e, por fim, pintor de paredes.
     Os serviços manuais, por aquele tempo, não tinham nada da simplificação de hoje em dia. Um pedreiro sabia dar um bom acabamento ao exterior, firmando estatuetas em nichos ou moldando baixos relevos na parede, para gravar ao fim o ano de construção em algarismos romanos, como se esta gravação representasse sua própria assinatura.
     Por outro lado, um simples construtor de carroças ou charretes precisava dar um trato pictórico nelas, antes de entregá-las ao consumidor final. E a carroçaria de um caminhão recebia toda série de complicados arabescos, antes de ser dada como pronta. Outro grande pintor, Sylvio Pinto  (1918-1997), começou sua vida pintando carroças.
     Pois foi juntando o dom da pintura à necessidade de sobrevivência, que Volpi, depois de tantas tentativas frustradas para encontrar uma profissão estável, tornou-se pintor: um pintor de paredes, despejando sobre elas as idéias que giravam em sua mente, decorando cada parede segundo o gosto do freguês.

Dois grupos rivais
      Dezoito era um número significativo para Volpi: aos dezoito meses, chegou ao Brasil; aos dezoito anos, pintou seu primeiro quadro, digno desse nome, iniciando seus contatos com a paisagem. Quatro anos depois, participou de uma exposição promovida pela Muse Italiche, onde foi premiado com medalha de ouro, sem que isso significasse algo mais em termos de destaque.
     Seus horizontes se abriram por volta de 1935, quando Volpi começou a freqüentar o ateliê de Rebolo (Francisco Rebolo Gonzales - 1902-1980), no  Palacete Santa Helena, onde costumavam se reunir outros pintores, operários como ele, e, da mesma maneira, procurando um lugar ao sol.
     Em 1937, ano tumultuado na vida brasileira, um grupo de artistas, melhor situados na vida, criou para si, em São Paulo, um centro de exposições anuais, dando-lhe o nome de Salões de Maio. Era um grupo fechado, de vanguarda, com idéias próprias de arte, rechaçando, por exclusão, tudo o que não estivesse de acordo com seus conceitos.
     Nem pensar que os artistas do Grupo Santa Helena, quase todos operários, e quase todos autodidatas, tivessem qualquer possibilidade de inscrever-se nessas exposições. Partiram estes, então, para um empreendimento próprio e, com o apoio de Paulo Rossi Osir (1890-1959), formaram um grupamento de oposição, denominado Família Artística Paulista, o qual, em novembro de 1937, realizou sua primeira exposição, duramente criticada pelos opositores.
     Os Salões de Maio tinham o apoio do jornalista e crítico de arte Geraldo Ferraz, que acusava os pintores operários de viver o tradicionalismo, presos, no tempo, a uma arte já ultrapassada. Por seu lado, a Família Artística Paulista ganhou um valioso advogado, na pessoa do escritor Mário de Andrade, que também tinha acesso à mídia, e que os defendeu dos ataques vindos do outro lado.

Enfim, o sucesso
     Se a exposição de 1937 foi uma nulidade, já na de 1939, a Família Artística Paulista -- Volpi incluído nela -- encontrou boa repercussão, permitindo que os participantes ganhassem, senão notoriedade, pelo menos um espaço para se expandir.
     Voltando de Itanhaém, de cuja visita falamos ao início, Volpi já encontra algumas alternativas viáveis para seguir o caminho a que se propôs. Em 1944, recebendo um convite oficial, faz uma visita às cidades históricas de Minas Gerais.
     Por alguns anos, sua vida cai na rotina diária, mas, em 1950, juntamente com Rossi Osir e Mário Zanini (1907-1971), este também do Grupo Santa Helena, faz uma viagem de seis meses pela Europa, começando por Paris e seguindo depois para a Itália, onde se instala em Veneza, mas fazendo freqüentes visitas a Pádua, não distante dali.
     Foi em 1953, já nos seus 55 anos, que a arte de Volpi começou a ser aceita de forma incontestável, quando, na 2ª Bienal de São Paulo, empatou com Di Cavalcanti e ambos ganharam, em paridade, o título de Melhor Pintor Nacional.
     A partir daí, foi um suceder de exposições, um enfileirar de prêmios, e uma carreira de sucesso que ninguém mais conseguiria deter. Demorou a chegar o reconhecimento, mas quando veio, foi de uma forma patente e insofismável. Desqualificar Volpi, nesta altura, corresponderia à heresia de desqualificar, com ele, o já consagrado Di Cavalcanti, e isso nem o maior inimigo ousaria fazer.
     Em vão tentou-se enquadrar a pintura de Volpi em qualquer ramo do modernismo. Volpi era um cidadão comum,  avesso a rótulos, não os aceitando nem classificando-se em algum deles.
     Homem simples, detestava homenagens. A pedido de vizinhos, no bairro do Cambuci, Volpi pintou um mural em via pública. Reciprocamente, os vizinhos organizaram uma festa na própria rua, mas Volpi recusou-se a sair de casa, protestando, num sotaque «italianado» de paulista: «Ma que, homenage, io stô trabalhando, não vê?» (Texto de Paulo Victorino)
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