Do outro lado do mundo
Ano de 1940. Estamos em Lins, uma cidade de porte médio no interior do Estado de São Paulo, que, no momento desta narrativa, teria, quando muito, uns trinta mil habitantes, quase todos com sua atividade ligada ao campo. Dois jovens de origem nipônica, emocionados, se encontram e se comunicam no idioma de sua terra natal.
Um deles é Tikashi Fukushima, 20 anos, fugitivo de guerra, que acabava de chegar ao Brasil. E chegou ao Brasil bem a tempo, pois o Japão, envolvido em acordo secreto com os nazistas, em breve atacaria a base de Pearl Harbour, nos Estados Unidos, entrando abertamente no conflito, fechando suas fronteiras e tornando quase impossível a saída do país. Havendo trabalhado em sua terra como desenhista, agora, premido pelas circunstâncias, foi para a lavoura, arrancar da própria terra o seu sustento.
O outro é Manabu Mabe, um adolescente de 16 anos, no Brasil desde 1934, e que, juntamente com a família, também era um trabalhador rural. O que o unia ao recém chegado, além da pátria, era a paixão pelo desenho e pela pintura. Braços cansados e mãos calejadas, ainda encontrava fôlego e tempo para fazer suas experiências com as tintas, copiando da natureza as cores fortes e brilhantes que tanto o impressionaram no Brasil.
Anos se passaram e os dois seguiram, por caminhos diferentes, o mesmo destino que a vida lhes reservara. Ambos se tornaram pintores e ambos adquiriram renome; Ambos sentiram uma atração natural pela abstração, que se tornou, para um e outro, a fase mais importante e derradeira de suas carreiras.
De dia, comércio, de noite, ateliê
Tikashi Fukushima nasceu em Fukushima (Hokkaido), Japão, em 19 de janeiro de 1920, e veio para o Brasil em 1940, farejando a entrada de seu país no conflito mundial. Depois de alguns anos no interior de São Paulo, mudou-se para a Capital, abrindo uma molduraria na zona sul, onde, em breve, estaria formando um grupo de pintura, que ficou conhecido como Grupo Guanabara, nome do logradouro onde seu comércio estava instalado.
Em torno do Grupo Guanabara, se reuniam, além de Fukushima, outros pintores de origem japonesa como Yoshiya Takaoka (1909-1978), Yuji Tamaki (1916-1979), Tomoo Handa (1906-1996),Valter Shigeto Tanaka (1910-1970), Takeshi Suzuki (1908-1987),fb
Hajime Higaki (1908), Kenjiro Massuda (1915-1960) e Jorge Mori (1932). A todos esses, de origem nipônica, juntaram-se alguns «estrangeiros», como Arcangelo Ianelli (1922).
Quase todos tinham vários pontos em comum: moravam na Vila Mariana, que, com os bairros contíguos da Liberdade e do Paraíso, formam os grandes redutos japoneses em São Paulo; vieram do Japão como imigrantes e se instalaram como agricultores em várias cidades do interior paulista; todos eram pintores emergentes, de grande talento, mas nenhum havia conseguido, ainda, projeção no cenário artístico.
Era uma cidade diferente
É claro que uma sociedade de tal natureza só poderia progredir. A oficina de Fukushima (ele e Mori eram os caçulas da turma) de dia fazia molduras, de noite, transformava-se em ateliê. E, nos fins de semana, o grupo saía pelas cercanias em busca de cenários que lhes servissem de inspiração.
E o que encontravam! Nas décadas de 40 e 50, São Paulo ainda não se tornara a selva de pedras que é hoje. Vila Mariana ainda era um bairro bucólico, com sua estação de bondes, com casas térreas e uma paisagem até bonita. Um pouco mais adiante, o bonde entrava em caminho próprio, a linha da antiga Estrada de Ferro São Paulo-Santo Amaro e virava trem: apitava como trem, tinha estações no lugar de simples paradas e, a cada parada, um pequeno povoado, com chácaras, ruas de terra, árvores, enfim, o campo dentro da cidade.
O Grupo Guanabara organizou várias exposições até 1959, ano em que se dissolveu e, a partir de então, vários pintores, entre eles Fukushima, passaram a participar das exposições de outro agrupamento da colônia japonesa, o Grupo Seibi, que ainda subsistiria até 1972.
Um teste de qualidade
Fukushima esteve presente em várias exposições da Bienal de São Paulo, desde sua fundação em 1951; do Salão Nacional de Arte Moderna e do Salão Nacional de Arte Moderna; expôs em outros Estados, como em Belo Horizonte-MG e Curitiba-PR, Salvador-BA; seus quadros viajaram o mundo em exposições, destacando-se a Bienal de Tóquio, em 1963.
Da arte simplesmente contemplativa, Fukushima foi caminhando rapidamente para o cubismo para, finalmente, mergulhar no abstracionismo, onde se encontra a fase mais importante e mais produtiva de sua obra.
Segundo o filho, Fukushima, terminado um quadro, fazia seu rastreamento, de cima abaixo e de lado a lado, em busca de senões que pudessem ser corrigidos ou de detalhes que pudessem ser apurados. Quando nada mais achasse, então acrescentava ao quadro um sinal japonês correspondente à letra «i», indicando que o quadro atingira seu maior grau de perfeição.
A propósito, não confunda o pai, Tikashi, com o filho, Takashi: os nomes são muito parecidos, os dois são pintores, mas há uma distância de uma geração entre um e outro, além do que, cada um abre o próprio caminho a seu momento e a seu modo. Pode-se transmitir às gerações vindouras a técnica da pintura, mas não o modo de ser de um pintor. Este é como uma carteira de identidade: pessoal e intransferível. (Texto de Paulo Victorino)
IMAGENS