As grandes metrópoles brasileiras devem muito à força de trabalho dos  nordestinos. Entre as décadas de 1960 e 1990, aconteceu um boom da construção  civil no Brasil, nomeadamente no eixo Rio-São Paulo, e os nordestinos foram os grandes  pilares da atividade. Não raro, os encontramos nos edifícios que construíram, agora  trabalhando como porteiros.
        Meu pai era um advogado que tinha gosto pela construção civil.  A princípio reformava, depois passou a construir ‘gaiolas’, para ele e para os  amigos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Chamava de ‘gaiolas’, os apartamentos de  sala, quarto, cozinha, banheiro e área de serviço, que fazia em pequenas edificações  de dois andares, dois por andar, objetivando renda de aluguel, que foi a sua aposentadoria  e de minha mãe.
      Ao contrário dele,  nunca fui chegado à construção civil, mas em diversas oportunidades fui o fiscal de  suas obras. À tarde, ele ia ver os processos no Fórum e me deixava plantado na  construção tomando conta...
Os meus problemas acabaram
     Foi quando, num belo dia,  surgiu do nada um nordestino magro, mas forte. Devia ter uns trinta e poucos anos de  idade.
     Ele chegou manso e me  perguntou:
     - Moço, tem vaga para  servente de pedreiro?
     Vivíamos os anos 1960,  época de pleno emprego, quando era comum até aliciar os empregados dos outros. A  rotatividade dos empregados era grande. Os já ocupados se demitiam, iam de emprego em  emprego, sempre ganhando um pouco mais... Arranjar um bom pedreiro era coisa muito rara.  Com fama de bom patrão, meu pai não tinha dificuldades, mas a mão de obra era escassa.
     - Meu pai já está  chegando. Espera aí.
     E ele ficou ali parado, em  pé, calado, esperando, e eu sentado num monte de brita, aquelas pedras picadas que são  utilizadas no concreto das lajes das edificações.
     Meu pai tinha jeito para  lidar com os operários:
     - Como é o seu nome? Disse  ele, quando chegou.
     - Severino.
     - De onde você é,  Severino?
     - Da Paraíba.
     - De que cidade?
     - Pilar.
     - Fica perto de onde?
     - De Campina Grande.
     - Trabalha como servente  há quanto tempo?
     - Seis anos.
     - E, ainda, não virou  pedreiro?
     - Não, senhor.
     - Trouxe a carteira de  trabalho?
     - Sim, senhor.
     - Está empregado. Quando  pode de começar?
     - Agora mesmo.
     Para encurtar a história,  Severino morava de favor, sozinho e longe, não sei onde. Meu pai fez dele o seu homem de  confiança, ensinou-lhe o ofício de pedreiro. Tinha mulher e filhos, todos na Paraíba.  Naquele mesmo dia, passou a morar num galpão nos fundos do quintal da nossa casa. Só  depois de alguns anos, alugou uma casa e trouxe a família para morar no Rio de Janeiro. 
     Quando meu pai dava um  tempo paras obras, ele ia trabalhar noutros lugares. Quando as retomava, chamava o  Severino e ele voltava.
Construindo para
Saddam Hussein
Saddam Hussein
     Ali pelo início dos anos  1980, tive a notícia de que ele tinha ido para o Iraque, contratado por uma grande  empreiteira, para construir estradas e pontes para o governo do Saddam Hussein, aquelas  mesmas que vimos pela televisão, nos noticiários da Guerra do Iraque de 2003.
     Quando ele voltou, meu pai  já estava doente e tinha parado de fazer obras. Severino trabalhava não sei onde, mas  aos domingos, ali pelas oito da manhã, sempre aparecia lá em casa. Conversava com meu  pai e contava como tinha sido a sua semana de trabalho. Depois, sempre tinha alguma coisa  para consertar lá casa, almoçava conosco e ficava até de tarde. Virou uma espécie de  filho do meu pai.
‘A Impecável – Maré Mansa’
     Não me lembro da voz do  Severino. Falava muito pouco, o necessário, mas me recordo da sua fisionomia de homem de  bem, confiável. Andava limpo e bem composto. Comprava suas roupas na ‘A Impecável –  Maré Mansa’, uma loja popular que tinha o seguinte esquema de venda a crédito: os  trabalhadores, que tivessem a carteira de trabalho assinada, tinham crédito automático.  Era só apresentar a carteira de trabalho e já saia da loja de fatiota, sapatos e demais  acessórios novos. Dizia a propaganda no rádio: "Na Impecável Maré Mansa, você  não precisa de avalista e de mais nada, basta a sua carteira assinada". 
     Há alguns anos, tive a  felicidade de ouvir, no rádio, o depoimento de um dos sócios da empresa. Perguntado se,  à época, havia muita inadimplência no crediário da ‘A Impecável’, respondeu:
     - O percentual de  inadimplência era desprezível. Os trabalhadores, mormente os nordestinos, são muito  corretos. O único patrimônio que eles têm é o nome limpo. Quando não podiam pagar,  quase sempre por dispensa no emprego, iam à loja para se justificar e, novamente  empregados, retomavam os seus pagamentos. Quando algum deles não honrava o seu  compromisso, procurávamos saber junto aos empregadores e, invariavelmente, tomávamos  conhecimento de uma história triste de queda de andaime e de outros tipos de acidentes  letais. 
Voltando ao Severino
     Era de uma generosidade  espantosa, que nem cabe aqui me alongar. Tinha caráter e lealdade, que é raro de se  encontrar. 
     Ali por meados de 1985, meu  pai caiu de cama por força de longa enfermidade, para morrer em 20 de maio de 1987.
     Mesmo assim, com meu pai  já inconsciente, Severino não deixava de chegar ali pelas 8 horas da manhã de domingo  para a tradicional visita. Ficava parado, junto à cama, velando por ele, ou arrumando o  que fazer na casa, para ser útil. 
     Lembro-me da figura do  Severino, forte e rijo, no dia do enterro do meu pai. O rosto dele, como sempre,  tranquilo. Severino não era dado a nenhum tipo de demonstração de emoções
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Foi construir mais gaiolas...
     No dia 21 de junho de 1987,  com um pouco mais de 50 anos de idade, exatamente um mês após o enterro de meu pai,  chegou-me a notícia da morte do Severino, vítima de um câncer galopante.
     Decerto, só posso concluir que meu pai o  chamou para fazer umas gaiolas lá no céu e, como sempre, ele foi... 

 
 
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