quinta-feira, 26 de maio de 2011

Tobe or not tobe, eis a questão






     Tobe é o nome do cachorro que apareceu lá em casa. Casa, é como a maioria – até aqueles que moram em apartamento, como eu – se refere à própria moradia.


     O cachorro aparece nas nossas vidas sempre com uma historinha pronta, mas aparece e é fato consumado. E lá está o Tobe, que já chegou com o nome. Contudo, o recém-chegado tem a vantagem de não fazer xixi no tapete ou aromatizar o elevador do edifício, nem tampouco trazer incômodos aos vizinhos.


O pretenso dono do cão


     Quem chega com o cachorro é sempre o pretenso dono dele, cheio de histórias e amor para dar... Depois, passa a incumbência de lavá-lo, alimentá-lo, vaciná-lo e a levá-lo ao veterinário, assim como aos diversos passeios fisiológicos, para alguém que quase sempre é contra, ou melhor, é a favor do cachorro.

     É a favor, por que acredita que lugar de cachorro é no habitat dele, ou seja, num quintal, com uma parceira de sua espécie, para que tenha uma vida normal. A maioria das pessoas que gosta de cachorro não vê o lado do animal...


Já vi que esse cara
não gosta de cães...


     Pelo contrário, ninguém gosta mais de cães do que eu. Em toda a minha vida, tive tão-somente um: chamava-se Tarzan, um policial de pelo duro, muito forte, que deixou seus genes por toda a nossa rua e adjacências do bairro onde morávamos.

     Morávamos no Méier, numa casa com um quintal enorme, todo arborizado com pés de carambola, sapoti, tamarindo e manga espada. Ai que saudades! Além desse paraíso, o Tarzan era o dono da rua. Cachorro, naquela época, tinha vida social, vivia impunemente na rua, sem coleira ou mordaça. Os cães de todo mundo viviam na rua. Se você não acredita, azar seu, aliás, duplo azar já que não viveu naquela época, tampouco onde vivi a minha infância.


E a carrocinha?


    ‘A carrocinha pegou três cachorros de uma vez, a carrocinha pegou três cachorros de uma vez, tralalá que gente é essa, tralalá que gente má’. Lembram-se dessa cantiga de roda? 
     Durante toda a minha infância e adolescência, jamais tive notícia de que um cachorro tivesse mordido alguém na nossa rua. Cachorro ia para rua pegar cachorra e brigar com os machos concorrentes. Depois, voltava para casa, que era onde estava o angu com bofe, o maná tradicional dos cães daquela época. Ração? Ninguém sabia o que era isso...

     Um dia pintou a carrocinha e a rua ficou em pé de guerra, todo mundo de barra de ferro na mão. Os caras foram embora e voltaram com os meganhas fardados de cáqui, montados em cavalos. A turma encarou a polícia e o pau quebrou. Resultado, todo mundo foi parar na delegacia do Jardim do Méier. Apareceu um vereador, que conversou com o delegado, e ficou tudo bem. Esse negócio do “jeitinho” vem de longe...

     Essa passagem me marcou tanto que, quando via os meganhas em cima dos seus enormes cavalos, do alto dos meus oito ou nove anos de idade, dedo em riste, dizia-lhes em tom ameaçador:

     - Vou chamar o vereador, hein...

     Obviamente, que os policiais não entendiam nada e iam em frente.

     De fato, no antigo Distrito Federal, nos anos 50, os vereadores tinham muita autoridade: prendiam e mandavam soltar....


A importância dos cães


     Nessas histórias e noutras tantas que vocês têm para contar é que se vê a importância dos cães na vida das pessoas.

     Sei de fatos reais em que a vida das pessoas gira em torno dos seus cães: escolha de residência, recusa de viagens ao exterior, separações de casais, quando a mulher opta pelo cachorro ou vice-versa, e coisas que tais.


Por que tanta fidelidade
aos cães?

     Não é sempre que nossos familiares abanam o rabinho para gente... Estou mentindo?

    Todo mendigo tem um cão. Você já viu um cão mudar de dono? O do mendigo não troca o dele nem por um açougueiro. Aceitará a carne e os ossos, mas voltará para a companhia do mendigo.

     Em pequenos povoados de todo o mundo é comum o cachorro acompanhar o caixão de seu dono ao cemitério, se recusar a abandonar a campa, passando a viver lá, como que esperando que ele saia dali um dia... 


E a história do seu cachorro?


     - Meu cachorro? Que cachorro?


     - O Tarzan, o único que você teve!


     Vocês já notaram que esse cara que está dialogando comigo, é o Brumel Delano, o meu alter ego.

     Mas, como eu ia dizendo, nossa casa tinha um terreno muito grande. A casa começava com uma escadaria que passava por um jardim e chegava à varanda. Nesse plano ficava a casa propriamente dita, bem no centro do terreno. À direita, mais uma escadaria que dava para o quintal onde havia as tais árvores frutíferas de que lhes falei.

     O Tarzan transitava por todo o terreno, mas sempre estancava nas diversas soleiras das portas. Dentro de casa, jamais. Era o meu companheiro para tudo. Não tinha a menor intimidade com o Zezinho, meu irmão, sete anos mais velho do que eu. Dona Amália, minha mãe, era quem lhe servia o angu com bofe. Meu pai, era o que me parecia, não dava a menor bola para ele. Obviamente, o Tarzan era meu.


A idade chega para todos


     Os anos se passaram, eu e Tarzan estávamos com cerca de uns 15 anos. Eu estava em pleno vigor e o Tarzan, aos poucos, ia ficando cada vez mais cego e paralítico. Primeiro de um olho, depois das patas traseiras, depois o outro olho atacado por catarata e ia o bicho definhando... Mesmo assim, ele subia e descia a escadaria que dava para o quintal arrastando-se pela parede, o que era denunciado pela mancha do encardido que deixava na parede, do quintal à varanda, nas suas monotrajetórias de final de vida. 

     Um dia, às 10 horas da noite, como de praxe, depois de um programa do Ibrahim Sued na televisão, onde ele lia gaguejando as notícias mais importantes do dia, meu pai disse à minha mãe que iria estender o pano para o Tarzan.

     Esqueci-me de lhes dizer que meu pai, sistematicamente, ao longo dos possíveis 15 anos de vida do Tarzan, às 22 horas, estendia-lhe na varanda um pano de chão e o bicho ficava ali olhando para o portão principal, que não tinha cadeado nem fechadura. De vez em quando, ele dava uma volta em torno da casa e seus passos eram ouvidos através das janelas que, como era costume, só se fechavam quando fazia frio. Bons tempos, aqueles...


     Retornando: ao término do programa do Ibrahim Sued, minha mãe disse ao meu pai:

     – José, infelizmente, o Tarzan não está na varanda. Hoje, pela manhã, pedi ao Severino – então nosso caseiro –, que o levasse lá para o quintal. Agonizou o dia todo, por essas horas, já deve ter morrido.

    – Mas o Tarzan está na varanda, estou ouvindo os passos dele - disse meu pai, já se levantando para abrir a porta que dava para a varanda.

     E, creiam, lá estava o Tarzan de pé, firme nas quatro patas. Meu pai estendeu o pano, ele se deitou e nos estertores de sua agonia esticou as quatro patas e, naquele momento, morreu.

     Nunca tive um cachorro, o Tarzan era do meu pai e eu não sabia...


E o Tobe?


     O Tobe não precisa de fêmea, tosa, banho, comida, vacina, veterinário e de passeios fisiológicos. É o cachorro virtual do Brumel Delano que, como o dono, é um ser imaginário que também habita o nosso apartamento. Ambos dormem no meu computador e são usados nas minhas baboseiras literárias.





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