quarta-feira, 3 de abril de 2013

Picasso precisa combinar com sofá?




por Mírian Pinheiro
Fonte: Jornal Estado de Minas - Belo Horizonte, 31/08/2003

A grosso modo, o mercado de arte caminha para onde está o dinheiro. Esse é o mandamento de quem vive numa economia estagnada, onde é cada vez mais difícil vender, principalmente mercadoria cara, como é o caso da obra de arte. Mas, se a figura do colecionador é cada vez mais rara, em contrapartida, cresce o número de pessoas interessadas em ter em casa um trabalho assinado por um artista. É exatamente a volta para dentro de casa, imposta pela violência urbana, que tem incrementado o mercado de arte no País. As pessoas estão interessadas em casas bonitas e acolhedoras. Por isso, hoje, o decorador responde pelo maior percentual de vendas das galerias. Normalmente, ele é quem sai à caça das peças que irão transformar o espaço privado no ambiente desejado. Daí, a sua presença cada vez mais freqüente dentro das galerias de arte.

Mas nem tudo são flores nessa relação de compra e venda. O que os donos de galeria têm percebido é que há um certo desconhecimento por parte dos decoradores sobre o emprego da arte na decoração. Para Beatriz Lemos de Sá, dona da galeria de arte que leva o seu nome, a obra de arte não tem o compromisso de combinar com nada. “Mas existe, sim, uma demanda pelo serviço do decorador nesta área. E muitas pessoas deixam a cargo dele essa escolha. Infelizmente, nem todos têm uma cultura artística para indicar a melhor opção”, critica. O que no meio tem sido comum, ela diz, é se eleger nomes (como se fosse receita de bolo) e só comprar trabalhos desses artistas.

Para ela, há pretensos artistas que se dedicam a fazer trabalhos para agradar exatamente a esse público, apesar de acreditar que são adornos o que produzem, não arte. “Artista com ‘a’ maiúsculo ninguém dá o tom para ele”, diz a marchande, cuja venda maior ainda é para colecionador.

Informação

Na opinião de Beatriz Abi-Acl, dona da Agnus Dei, o decorador tem uma importância singular neste mercado. “É a ele que as pessoas de fora recorrem quando chegam a BH, sem conhecer direito as galerias de arte da cidade”, afirma. Mais positiva, ela acredita que os decoradores já estão buscando entender mais o mercado de arte, a obra, o artista. Mas é preciso fazer mais para que histórias que ela classifica como “verdadeiros crimes” não aconteçam sempre. “Recentemente, tive um casal de clientes apaixonados por uma obra de Mariza Trancoso. No entanto, eles não puderam ficar com o quadro porque sobravam 20 cm de parede. O decorador deles não permitiu”, conta, ao criticar a conduta do profissional que age assim - um tipo de interferência que vê com profunda tristeza.

Para ela, antes de qualquer coisa, os decoradores precisam avaliar a honestidade do trabalho do artista, embora admita que eles também não têm culpa de o artista optar por fazer uma obra somente com a intenção de decorar. Sua parte, a de marchande, Beatriz faz privilegiando artistas mineiros de qualidade. “Faço cinco exposições por ano, quatro são de artistas daqui e apenas um de fora”, diz. Já para Celma Albuquerque, dona da galeria que leva seu nome, o decorador para prestar uma boa assessoria, deveria estar bem informado. “Por quase quatro anos mantive um curso de história de arte na galeria, nenhum decorador matriculou-se”, afirma, sem entender o porquê de o profissional não conversar mais com os marchands, uma vez que o seu cliente precisa ser bem informado para comprar melhor.

João Carlos Lopes dos Santos – consultor de mercado de arte e perito judicial na área de mercado de arte há 20 anos no Rio de Janeiro -, diz que é preciso paciência. “O mercado de arte organizado do País tem um pouco mais de 40 anos e ainda está se desenvolvendo, ávido por encontrar uma economia brasileira saudável”. Na sua visão, Belo Horizonte está em pé de igualdade com o mercado do Rio de Janeiro e São Paulo e o seu viés é de alta. Porém, discorda de o decorador, no cenário nacional, ser o principal consumidor de arte. Na sua visão, os quadros de coleção têm tido uma procura jamais vista no mercado de arte brasileiro. “Quem tem um quadro raro, seja de um artista importante no cenário nacional – ou internacional -, sem dúvida, sabe que tem dinheiro em caixa e absoluta liquidez. Mas não vê problemas no fato de o grande consumidor não ser colecionador.

“Aliás, é bom que se diga, todas as grandes coleções de arte do País começaram com a intenção de decorar as paredes e, quase sempre, com a aquisição de obras de arte dos artistas novos da época”, afirma. Também neste setor, dos artistas novos, Minas Gerais apresenta excelentes nomes”, elogia.

“Arte” perigosa

O consultor João Carlos Lopes dos Santos diz que, enquanto intermediador da compra, muitas vezes até fazendo a escolha no lugar do cliente, o decorador deve estar atento ao meio que atua. “Há de tudo: autocopista, cover, importador de criatividade, falso artista plástico, enganador, impostor, retroprojetista, industriário e falsificador”. Aos desvios de conduta do segmento chama antiartes, que nada mais são do que a cópia, o plágio, o embuste, a falsificação e todos os tipos de mentira na criação artística. A isso também faz questão de dizer que sempre se opõe, “a 180 graus”, de todos os argumentos que pretendam justificar qualquer tipo de antiarte.

Para ele, o inimigo número um das artes plásticas é o mau profissional, seja qual for a sua atividade no mercado de arte - artista, consultor, vendedor. Mas essas práticas, ele diz, não são mazelas contemporâneas, exclusivas do mercado de arte brasileiro. São universais - e existem em todas as atividades humanas desde os primórdios da civilização.

Para Marco Elizio, professor de crítica de arte da Escola de Belas Artes da UFMG, o decorador, até pelo volume de negócios que movimenta nas galerias, deveria preservar mais as artes, se informar melhor, colaborar para educar o grande público. “Ainda acontece muito de ele atender o gosto do cliente, e acabar ‘empurrando’ obras mais conservadoras”, lamenta, ao afirmar que, quem quer decorar uma casa, quer parecer “moderno”, ainda que, para isso, esteja elevando ao limbo o que ele chama de cultura neogeo - mais minimalista, mais deglutível. “Chamo isso de modernoso, mistura de moderno e horroroso, cópia de revistas, salões de Milão”, critica, ao reconhecer o mesmo fenômeno na moda. Para ele, o decorador pode convencer com a dignidade do seu trabalho.

O que Marco Elizio mais teme é a uniformização, “são casas que mais se parecem vitrines fotografadas para revistas”. Ele defende a idéia de o decorador ser uma espécie de conselheiro de investimento. “Do mesmo modo que um sofá de R$ 5 mil pode ser jogado fora daqui a alguns anos, o neogeo também perderá liquidez. Ao contrário de uma obra de arte, que tem valor eterno”, avalia, ao acrescentar que colocar arte dentro de casa é uma questão de sabedoria e informação, não de moda. Ele acredita que o decorador pode transformar o seu cliente em colecionador - uma atividade humana de preservação da memória, diferente de um mero consumidor.

De acordo com a presidente da Associacão Mineira de Decoradores de Nível Superior (Amide), Maria Ignez Coutinho, ainda há muitos profissionais que não conhecem - como deveriam - o mercado de arte. “Essa prática de comprar o que combina com o ambiente, infelizmente é comum”, revela a decoradora. Na sua opinião, o cliente reforça o erro, na medida em que confia no profissional que contrata, acatando suas decisões, e ao subestimar o poder de uma obra de qualidade. “O cliente gasta uma fortuna com um móvel, mas na hora de comprar um quadro não quer gastar”, afirma Maria Ignez.

Para tentar mudar essa cultura, ela conta que a Amide tem promovido visitas orientadas a galerias de arte, com o intuito de aproximar o decorador do marchand, de uma maneira mais informal. A última visita aconteceu na galeria Agnus Dei. Segundo Maria Ignez, 35 profissionais participaram. Um número pouco expressivo, se comparado com os 700 profissionais cadastrados na entidade. Mas a saída, ela acredita, está mesmo na promoção de eventos - o que inclui visitas aos ateliês dos artistas - que favoreçam o maior conhecimento do decorador. “Aos poucos, a classe vai se conscientizar de que obra de arte, além de valorizar a decoração, ser a chave de ouro, é investimento. E o decorador que sabe disso está à frente dos outros”, enfatiza, ao chamar atenção para a necessidade de fazer com que reconheçam melhor o trabalho dos artistas mineiros.

Lei garante

Segundo a assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Cultura, a Lei Municipal 5.893, de 5 de maio de 1991, obriga a colocação de obra de arte em prédios com área bruta maior de 2 mil metros quadrados. Os artistas plásticos que querem ter obras exibidas nos halls devem se cadastrar nas Secretarias de Cultura e Fazenda de Belo Horizonte.

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