Há quem dê à arte muitas definições conforme seus interesses diretos: culturais, profissionais ou comerciais. Grosso modo, dizem: isto é arte, aquilo não é. Seja qual for a manifestação artística, defino arte assim: Arte é a emoção de quem a faz, cristalizada pela emoção de quem a recebe. É por isso que, ao se contemplar uma obra de arte, ouvir uma música, assistir a uma peça teatral, uma película cinematográfica, uma telenovela, ler um livro ou outras manifestações artísticas, uns gostam, outros não. Daí, se falar de público específico, de segmento, de mercado de nicho em contraponto ao mercado de massa.
A telenovela se destina ao mercado de massa. Para os críticos ortodoxos, tecnicamente não é considerada arte, posto que, até quando se cria – fala-se aqui genericamente –, se faz pensando em conceder, literariamente ajoelhando-se aos pés do público e, literalmente de olho na pesquisa de opinião. Índices elevados trazem veiculação de comerciais e merchandising que geram grandes faturamentos com altíssimos lucros.
Luiz de Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e José Saramago, assim como Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Vinícius de Moraes e Mário Quintana, para ser econômico nos exemplos da literatura luso-brasileira, jamais perguntaram aos seus leitores se aquelas obras-primas que estavam a escrever eram do agrado deles e, nem por isso, eles e suas obras deixaram de ser imortais.
Telenovela não se assiste, acompanha-se à nossa revelia. É elaborada com o pensamento voltado, quase que exclusivamente, aos telespectadores não assíduos. Assistindo-se a um capítulo por semana, não se perde o fio da meada. A telenovela de grande audiência invade a nossa vontade. Todos se encarregam de comentá-la à nossa volta. As outras emissoras de TV e as Rádios a comentam. O jornalista Washington Rodrigues, o Apolinho da Rádio Tupi/RJ, todas as manhãs no final de 2010 fazia uma imperdível paródia do capítulo da noite anterior de ‘Passione’ – a telenovela global das nove que era transmitida naquele momento. A paródia superou a obra...
Mesmo não tendo o status de boa literatura, as telenovelas são um absoluto sucesso de público – leia-se mercado de massa –, aqui ou no Exterior. Há quem lastime que as telenovelas não levem ao povo educação, cultura e uma correta informação, mesmo não sendo esse o principal objetivo da televisão aberta brasileira, diante da declaração recorrente de que ela visa apenas o entretenimento.
Na verdade, algumas vezes, a telenovela deseduca e desinforma. Haja vista, a atecnia jurídica detectada em várias telenovelas, como, por exemplo, a cristalizada pela possibilidade da outorga uxória para venda de um imóvel através de uma procuração por instrumento particular, forjado em uma folha de papel assinada em branco... Em outras, detecto falhas, menos graves, na área do mercado de arte: uma pintura flagrantemente antiga apresentando o reverso da tela absolutamente limpo, branco, como se tivesse acabado de ser pintada. Além disso, portas com aparências seculares que tremem como varas verdes ao serem fechadas – muitas vezes nem fecham... A iluminação com sombras difusas, como se vê em várias telenovelas, decerto, é o seu ‘calcanhar de Aquiles’. Outros equívocos, com certeza, devem ser perpetrados em outros campos técnicos e científicos que não domino.
Mesmo assim, conseguem fazer produtos inigualáveis e as telenovelas brasileiras são um fenômeno mundial. Já de algum tempo, são exportadas para inúmeros países e dubladas em diversos idiomas. Portugal todo se recolhe aos seus lares para assistir às telenovelas brasileiras. Desde as antigas radionovelas, o público vem se emocionando com esse entretenimento – minha avó materna morreu numa tarde dos anos de 1950 durante a transmissão de uma novela da Rádio Nacional, depois de fazer um acre comentário sobre a vilã do folhetim. Aqui no Brasil, temos a máquina pronta e azeitada para a produção de telenovelas em escala industrial. Dispomos de um grande número de profissionais de excelente qualidade: atores, técnicos, diretores e roteiristas. Até aí, a máquina está pronta e azeitada para produzir telenovelas com qualidade.
Há muitos anos, arvorando-me em crítico de telenovelas, defendo a individualização do autor nas telenovelas, separando-o do roteirista. Decerto, a maior dificuldade para a execução de uma boa telenovela está em se conseguir uma excelente e personalíssima ideia central, isenta da possibilidade de ser indigitada com uma acusação de plágio. Depois, essa ideia central seria desenvolvida por um dos nossos excelentes roteiristas. Além do núcleo central, onde se desenvolve o tema principal da telenovela, haverá sempre núcleos secundários, que interagem entre si e com o núcleo central. Se dramática ou trágica isso não é importante, o lado cômico sempre se fará presente no folhetim eletrônico. Faz parte do sistema. Quase sempre, as telenovelas são obras híbridas em que os três gêneros teatrais se reúnem, deixando de lado ateoria clássica que preconiza que os gêneros deveriam ser mantidos separados. Adotando uma teoria moderna, as telenovelas brasileiras homenageiam em seu bojo – muitas vezes no mesmo capítulo –, Racine (drama), Corneille (tragédia) e Molière (comédia). Uma pitada velada – às vezes, mais do que uma pitada e nem tão velada – de um grande clássico da literatura mundial, como a ‘Divina Comédia’, ‘Romeu e Julieta’, ‘Fausto’, ‘Primo Basílio’, ‘As Pupilas do Senhor Reitor’ e, o que é mais grave, de outras obras menos conhecidas.
Os roteiristas estão sempre procurando novas ideias, a fim de sair das soluções adrede preparadas. Falo por mim, a criação literária chega a um ponto em que se torna esparsa, fruto da exaustão criativa compulsória. Se o escritor não descansar por um bom tempo, começará a se repetir de forma estereotipada.
Bem diferente da minissérie e do caso especial, que são obras fechadas, a telenovela é uma obra aberta: começa com um rumo, com base numa sinopse, mas terminará Deus sabe como, já que na busca da audiência, o povo – o verdadeiro autor – também aqui é a voz de Deus. Através da mídia, volta e meia, recebemos notícias de que o personagem tal vai morrer, porque o ator está insatisfeito com o papel ou porque o público não está gostando do personagem. Ou que, por apresentar baixos índices de audiência, a direção vai se reunir para dar novos rumos à trama de determinada telenovela. E, realmente, com essas mudanças, eles conseguem arribar a audiência de seus produtos. Honra seja feita: são profissionais competentes e não deixam jamais o índice do IBOPE cair.
Assim, grosso modo, em busca dos pontos de audiência e do share (forma abreviada de share of market,fatia de mercado, percentual de participação no total de televisores ligados em um determinado momento), quem escreve a telenovela é o público que interage, apresentando sugestões, reclamações, ideias, que deixa de assistir ao folhetim e depois volta, balançando os números do IBOPE. Contudo, os direitos morais e patrimoniais sobre a obra serão sempre de quem a assina.
Quem sabe, um novo caminho
Diante do exposto, apresento a quem se interessar uma ótima ideia para a televisão brasileira: telenovelas biográficas ou baseadas em boas literaturas. Há cerca de uns 25 anos – escrevo em 2011 –, não há renovação de autores de telenovelas. Os autores são sempre os mesmos, acharam suas fórmulas e se repetem a cada novela. E o povo, aprisionado em suas casas pela violência urbana e levado à preguiça mental por essas repetições, gosta dessa mesmice, o que estimula o ranço como num moto perpétuo. Pensam que estão a consumir arte, quando arte não é, posto que, quando se procura agradar ao público, entra-se no campo do comércio e foge-se do que é artístico. Eis o que faz a procura desenfreada da audiência a qualquer custo, em busca de objetivos comerciais. Há uns 15 anos, um profundo conhecedor da televisão brasileira, indo ao encontro do que já tinha certeza, sentenciou que o maior problema da televisão brasileira era a falta de renovação dos autores, nomeadamente de telenovelas. Ainda na minha ótica, os textos das telenovelas têm maltratado em demasia o talento inconteste dos atores brasileiros, que nada estão a dever aos atores de quaisquer outros países.
Mas como se mudar a fórmula, se o povo está cativo à surrada mesmice? Contudo, se não houver renovação, como acontece com tudo na vida, chegará a hora em que o público vai se cansar e a telenovela chegará aos estertores de sua agonia. A televisão brasileira tem incontestável qualidade técnica e artística, mas está a carecer de conteúdo. Não seria hora de se dar ao público um entretenimento cultural verdadeiro, exibindo telebiografias de notáveis e adaptações de boa literatura em horário nobre?
Finalizando, não posso deixar de acrescentar o comentário do mestre Paulo Victorino, titular da Pitoresco como um todo, a respeito da proposição acima: João, é o que os americanos chamam de “wishful thinking” (pensamento desejoso), um devaneio sobre algo que não pode acontecer, porque contraria a regra fundamental da comunicação usada pela televisão aberta, que é dar ao público o que ele deseja.
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