Posando de Menino-Deus
O pimpolho estava completando exatamente seus oito meses quando recebeu uma visita importante, a de sua prima Josefina de Vasconcelos, que viajara da Inglaterra ao Rio de Janeiro só para conhecê-lo.
Josefina era escultora de talento e já com tradição na Europa. Embora inglesa de nascimento, vivera no Rio de Janeiro, onde teve oportunidade de estudar com Rodolfo Bernardelli, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes e, na época, o mais importante referencial em escultura no Brasil.
Tanto ela quanto o menino pertenciam à família Hermes da Fonseca, da qual saíram dois presidentes da República, além de vários políticos e militares, principalmente do Rio Grande do Sul e de Alagoas.
O encontro entre ambos revelou a presença de almas gêmeas. A artista e o garoto demonstraram uma forte atração um pelo outro e ela passou uma parte de seu tempo retratando o primo, em dezenas de esboços que, ao retorno, levou consigo para a Inglaterra.
Em seu país, já a esperava uma encomenda de escultura com a virgem e o menino, que deveria ser colocada, em caráter permanente, na Catedral de São Paulo.
Josefina não teve dúvidas: usou os esboços que trouxera do Rio de Janeiro para esculpir o menino Jesus nos braços de Maria, uma imagem que até hoje se acha naquela catedral.
Foi assim que, já nos primeiros meses de vida, Aurélio D’Alincourt ingressou no mundo das artes, involuntariamente, posando de Menino-Deus.
O chamado da Pátria
Aurélio D’Alincourt nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1919 e faleceu na mesma cidade, em 1990.
Descendente de família influente e morando em Copacabana, teve uma infância privilegiada, que lhe permitiu desenvolver bem suas aptidões em vários campos de atividade, e não apenas no desenho artístico.
Com efeito, sua primeira experiência profissional, aos 19 anos, deu-se como cartógrafo, na Prefeitura do Rio de Janeiro. Esse emprego estatal, ele o conservou pela vida afora, até a aposentadoria.
Poucos anos depois, o Brasil entraria na Segunda Guerra Mundial, declarando guerra à Alemanha e preparando uma força expedicionária para atuar nos campos da Itália. Reservista de 1ª Categoria, esteve perto de ser convocado, mas, por capricho do destino, foi seu irmão Afonso que seguiu para a batalha, atendendo ao chamado da pátria.
Entusiasmado, porém, como os jovens de sua época, pela causa da liberdade, D’Alincourt, após insistentes apelos, acabou por aceitar uma incumbência que lhe dera a revista Opinião, para a qual passou a fazer gravuras, ressaltando a bravura de nossos soldados, ou representando cenas de guerra.
Duas importantes decisões mudariam sua vida naquele momento. A primeira foi a de procurar o pintor Osvaldo Teixeira, cujo ateliê passou a frequentar. A segunda, igualmente ajuizada, foi a de constituir família, casando-se com Lia Jansen de Melo, que se tornou a mãe de seus quatro filhos, Marília, Luís Eduardo, Ângela e Marco Aurélio.
Quando a arte fala mais forte
Nessa altura dos acontecimentos, se dúvidas houve, no passado, com relação à sua vocação para a pintura, todas elas já haviam se dissipado inteiramente. Num estágio mais avançado, começou a receber aulas de Carlos Chambeland, um veterano da pintura, ligado à Escola Nacional de Belas-Artes.
Paralelamente, passou a se inscrever, sistematicamente, nos Salões que aquela academia realizava nos finais de ano e, já em 1945, conseguia Menção Honrosa com o quadro Retrato de Jenny. Dois anos depois, recebia a Medalha de Bronze com a obra Retrato de Sara Vilela e, no ano seguinte, deu um novo avanço, ao conquistar a Medalha de Prata com o Retrato de Elisa Seelinger.
A grande e rara oportunidade surge no Salão de 1951, quando conquista o Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro Crítica Sentimental, onde capta, com extrema sensibilidade, o olhar distante da retratada, Inara Barcelo Cruz e, completando o quadro, coloca a si mesmo, com a paleta na mão esquerda, contemplando o modelo.
Um prêmio cheio de contratempos
No ano seguinte, D’Alincourt embarca para a Europa, com um plano de viagem e de estudos muito bem detalhado, levando consigo a esposa Lia, assim como os filhos Marília, Luís Eduardo e Angela.
Neste empreendimento, nem tudo deu tão certo quanto fora planejado. Primeiro, as dificuldades em conseguir alojamento, dado às restrições feitas a casais com filhos. Em breve teriam de sair do apartamento que alugaram, para ir morar em um hotel, até que uma nova moradia fosse encontrada.
Pelo final do ano, um outono tempestuoso prenuncia a chegada de um inverno que será ainda mais rigoroso. As crianças, pouco afeitas ao clima, em breve adoecem e, para completar o quadro, a mulher fica grávida do quarto filho.
Aurélio não tem dúvidas e, para garantir o bem-estar da família, cancela as viagens programadas para Itália, Holanda e Espanha, retornando todos ao Rio de Janeiro.
É difícil descrever o clima em que foi recebido pelas autoridades ligadas ao Ministério da Cultura. O prêmio lhe fora creditado na totalidade para cumprir inteiramente o roteiro e, havendo interrompido a viagem, o Museu Nacional exigia a devolução de parte do dinheiro.
A visão do pintor era outra. O prêmio foi concedido pelo quadro que, de acordo com o regulamento, passou a pertencer definitivamente ao Museu, completando-se, com essa operação, a realização de um contrato perfeito e acabado, nada mais sendo devido por qualquer das partes.
Após longas discussões, chegou-se a uma solução de consenso: D’Alincourt voltaria a viajar, desta vez sozinho, para Nova York, onde completaria seu período de estágio, voltando ao Brasil, meses depois, com sua situação regularizada.
Mudança de rumos
Os acontecimentos que se seguiram, durante toda a década de 50, alteraram por completo os rumos de sua vida. A revista O Cruzeiro necessitava de um gravurista para ilustrar as histórias de amor que publicava e encontrou em D’Alincourt o homem que procurava.
O Instituto de Belas-Artes do Rio de Janeiro estava buscando por um professor para aulas com modelos e o pintor aceitou o emprego, atendendo a um apelo de seus amigos Leão Veloso e Augusto Seabra.
No convívio diário com belas e jovens estudantes, D’Alincourt veio a se apaixonar por uma de suas alunas, Heloisa Brito Machado, com quem passou a viver, e de quem somente a morte conseguiu separá-lo.
O sucesso torna-se uma imposição de sua própria carreira e os prêmios se sucedem através dos anos. Suas filhas Marília e Ângela resolvem seguir a carreira do pai, o que representa um incentivo mútuo.
Um vasto e acolhedor ateliê é montado na Rua Senador Vergueiro, onde o pintor se instala em definitivo. É uma carreira sem mais sustos ou percalços e a própria variação financeira, comum na vida de um pintor, pôde ser contrabalançada com a renda fixa de duas aposentadorias, a do serviço público e a do Instituto de Belas-Artes.
O humanismo sempre presente
Uma das características marcantes na obra de Aurélio D’Alincourt é o academicismo que sempre o acompanhou, mesmo quando fez algumas concessões à arte moderna.
A outra, consequente, é o profundo apego do pintor aos seres humanos, colocando em segundo plano as paisagens, marinhas e naturezas mortas, para se fixar quase que tão somente na beleza e expressividade do corpo humano.
Essa opção, ele a demonstrou, com rara felicidade, nos retratos, nos nus, nas maternidades. Como os renascentistas, ele colocou ser humano (leia-se: a mulher) no centro de seu universo, buscando desnudá-lo, não apenas no corpo, mas sobretudo na alma, refletida nas expressões faciais dos personagens.
Viajar pelos quadros de D’Alincourt é, pois, como realizar um passeio pelos mais profundos recônditos do ser humano. Senão por outras razões mais, esta é uma característica que o distingue dos demais pintores de sua geração. (Texto de Paulo Victorino)
IMAGENS
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