A bela e misteriosa selva
Estamos no ano de 1896, fim de século. Bem distante da capital federal, um outro núcleo, igualmente importante, vive um estado de efervescência econômica, política e cultural. É a misteriosa cidade de Manaus, mergulhada na selva amazônica, sem estradas ou qualquer meio de comunicação que não sejam os seus rios, mas, neste momento, tão cortejada quando o Rio de Janeiro.
O ambiente continua selvagem. Não é preciso afastar-se muito da cidade para dar de encontro com aldeias de índios vivendo em seu estado primitivo; bastavam alguns quilômetros de espaço para retroceder pelo menos um milhar de anos na civilização.
E as amazonas ? Ah, as amazonas! Aquela sociedade de mulheres selvagens, as primeiras feministas que o mundo já conheceu, que mantinham-se afastadas do mundo masculino, que cortavam um dos seios para entesar melhor o arco, disparando a flecha certeira que atingia a presa e garantia sua alimentação, ou que mantinha o inimigo distante da aldeia.
Teriam existido, de verdade, as amazonas ? Pelo menos naquela época, havia quem acreditasse nisso. E, em meio às conversas, sempre aparecia um paranóico a garantir que já vira alguma delas.
Presente e futuro na
capital amazonense
capital amazonense
Pois Manaus, mergulhada na selva e em sua mitologia, vivia, no final do século, a euforia trazida pelo milagre da selva: para os cientistas, a «hevea brasiliensis»; para nós outros, simplesmente a «seringueira», guardada por uma eternidade na imensidão da selva e agora cobiçada pelo mundo inteiro, matéria prima essencial para a produção de pneus, procurada desesperadamente pela recém criada indústria de automóveis.
Era uma dádiva que parecia nunca acabar. Bastava abrir trilhas pela mata para encontrar a árvore milagrosa da borracha. A terra, nada representava, economicamente. O que tinha valor comercial, realmente, eram as trilhas que conduziam de uma seringueira a outra. Cada trilha tinha seu proprietário e a propriedade da trilha era respeitada religiosamente. E pobre de quem se atrevesse a invadir trilha alheia, para tirar a seiva de uma árvore que não lhe pertencia!
Pois nesse final de século, dois importantes eventos para o futuro da arte se registrariam em Manaus: Em 1896 ocorre a inauguração do esplendoroso Teatro Amazonas, uma salada russa de estilos e decoração, mas também um monumento à riqueza do Estado. Era a demonstração de poder dos recém estabelecidos empresários, os novos ricos.
No ano seguinte, outro acontecimento de importância para a arte, mas naturalmente despercebido: em 25 de março de 1897, nasce Manoel Santiago, criatura simples, herdeiro de nada, nem de trilhas nem de árvores, mas possuidor de um dom inato, que o colocaria entre os mestres da pintura brasileira.
Uma figura marcante
O teatro, tornou-se um símbolo do passado, de uma riqueza efêmera; Santiago simbolizou o futuro, senão em sua própria e suficiente arte, ao menos pela influência que exerceu em outros grandes artistas brasileiros do Século 20, tendo orientado os primeiros e decisivos passos de José Pancetti (1902-1958), Ado Malagoli (1906-1994) e Milton Dacosta (1915-1988), além de muitos outros.
Manoel Santiago não aprendeu, propriamente, pintura ou desenho; a arte nasceu com ele, era parte integrante de seu ser e ele mesmo, não tem certeza sobre quando começou a rabiscar figuras humanas: «Tinha seis anos quando pintei um retrato a carvão de meus avós, sendo este, que eu me lembre, o primeiro trabalho meu.»
Com tendência inata para o desenho e a pintura, tudo que teve de estudar, para melhor desenvolvimento, foi a técnica da arte pictórica, o que transformou-se, para ele, em uma faca de dois gumes: de um lado, o estudo moldou-lhe a personalidade, sujeitando-o a uma rigorosa autodisciplina, criando nele um zelo todo especial com os detalhes, uma luta incessante na busca da perfeição; de outro, manteve-o atrelado aos ensinamentos da Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno e, mais tarde, professor. Não conseguiu soltar-se, sendo sua pintura, quase toda ela, uma repetição monótona de estilo, conquanto muito bem elaborada.
Sob a luz dos refletores
É possível que, se tivesse permanecido em Manaus, terminaria sua vida como um obscuro artista. Todavia, contingências da economia levaram seus pais, poucos anos após, a mudarem-se para Belém, Estado do Pará e, de lá, para a cidade do Rio de Janeiro, onde Santiago completou seus estudos básicos e entrou para a Faculdade de Direito.
Paralelamente aos estudos regulares de direito, ingressou na Escola Nacional de Belas-Artes como aluno livre, sem matricular-se, pela impossibilidade de comparecer regularmente às aulas.
O Rio de Janeiro era, como é até hoje, a caixa de repercussão das artes, e a presença de Santiago nessa cidade foi importante para ter seu talento notado e incentivado. Ganhando, no Salão Nacional de Belas-Artes, um prêmio de viagem à Europa, passou quatro anos em París, entre 1928 e 1932, com lucro dobrado: ao mesmo tempo em que estudava com renomados professores franceses, firmou amizade com um grupo de pintores brasileiros também de passagem pela Europa, dentre eles, Portinari e Di Cabalcanti.
Mas foi mesmo no Brasil que veio a conhecer um pintor que o marcaria de maneira indelével: era o professor italiano Eliseu D'Angelo Visconti (1866-1944), cujo ateliê passou a freqüentar, e cuja influência carregou pelo resto da vida, considerando-o o «artista que continuo a acatar como legítimo mestre».
Vencendo a força da inércia
Voltando da Europa, em 1932, tomou contato com o Núcleo Bernardelli, formado por um punhado de iniciantes desorientados, entre eles, Edson Mota (o organizador do grupo), José Pancetti, Bustamante Sá, José Pancetti, Milton Dacosta e Ado Malagoli.
Embora fazendo duras críticas à pintura desses moços, sentiu-se atraído pelo interesse demonstrado por todos eles e dispôs-se ajudá-los, o que o fez muito bem, pois muitos, dentre esses novos discípulos, conseguiram escalar a trilha da fama, tendo seus nomes registrados na história da pintura no Brasil.
Participou, ainda, sem cessar, de várias exposições, no Brasil e no Exterior, destacando-se as do Salão Paulista de Belas-Artes, onde foi várias vezes premiado; do Salão de Rosario, na Argentina; do 4º Centenário de Santiago do Chile; do Salão de Belas-Artes comemorativo do 4º Centenário do Rio de Janeiro (medalha de honra) e muitas outras.
Deixando à parte a grande obra que realizou como pintor, sua importância maior foi a formação dessa nova geração de pintores que conseguiram igualar-se, quando não, até superar o próprio mestre.
Sua esposa, Haydéa Santiago (1896-1980), também era pintora. Manoel Santiago veio a falecer no Rio de Janeiro em 1987 e, nesse mesmo ano, uma galeria de arte no Rio de Janeiro realizou uma exposição de quadros do casal.
(Texto de Paulo Victorino)
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