O velório
Seria um velório como tantos outros que acontecem diariamente na cidade do Rio de Janeiro. No esquife, uma irmã de caridade, vestida com o hábito da ordem que abraçara, cercada de outras irmãs, companheiras do mesmo convento, que, contritas, rezavam pela alma da falecida.
O que chamava a atenção, porém, era o grande número de pessoas que passavam pelo local, em trajes seculares, aparentemente desvinculadas de atividades clericais, mas que compareciam para prestar uma última homenagem àquela religiosa. Tratava-se de um acontecimento singular, já que, ao afastar-se para a vida religiosa, a devota rompe com o mundo exterior, passando a ter o convento por casa, a clausura por objetivo, e o fardo da cruz por flagelo.
Quem seria, pois, esta santa mulher, que parecia ter, fora do claustro uma relação de amizades maior do que entre as religiosas que lhe eram íntimas? Lá estava em seus registros: tratava-se da irmã Teresa do Amor Divino, da Ordem Terceira do Carmo. Essa identificação era a que valia diante da Santa Igreja. Porém, aqui fora, no mundo dos mais comuns mortais, até o dia em que assumiu o voto perante a Ordem, seu nome era Djanira da Mota e Silva, ou, simplesmente, Djanira.
A provação
Descendente de austríacos e de índios guaranís, ela era uma rara combinação do sangue ariano com o indígena. Djanira nasceu em 1914 na cidade de Avaré, Estado de São Paulo, mudando-se logo nos primeiros anos para Porto União, em Santa Catarina, onde teve uma infância de duro trabalho na lavoura.
Já adolescente, voltou para Avaré, depois seguiu para São Paulo, morando em quarto de pensão e trabalhando dez ou doze horas seguidas por dia, como vendedora ambulante, momento em que chegou a sentir saudades da vida rural.
Vivendo em ambiente insalubre, ganhando pouco e se alimentando mal, trabalhando além de suas forças, o que não queria acabou acontecendo: um exame médico diagnosticou tuberculose em grau avançado, o que determinou seu internamento no Sanatório Dória, de São José dos Campos, onde, em breve, estava sendo transferida para o pavilhão de pacientes terminais.
O milagre
Foi então que, em meio a intenso sofrimento e crises agudas, alguém lhe colocou às mãos pincéis e tintas. Djanira nunca havia pintado, mas de sua imaginação foi surgindo, iluminada, a figura de um Cristo crucificado. Não aquelas que costumamos ver a todo momento; era um Cristo diferente, dolorido, contorcido em dores, uma síntese da imagem de todos aqueles infelizes que se achavam atirados ao pavilhão dos desenganados, esperando a morte chegar.
Nos raros momentos de alívio à dor, as pinturas, uma a uma, foram surgindo e, aos poucos, o milagre começou a acontecer. Djanira, a quem os médicos não davam mais que alguns meses de vida, começou a se recuperar e, no mesmo tempo estimado para sua morte, ante a surpresa de médicos e enfermeiros, ela estava recebendo alta, quase que completamente curada.
República dos artistas
Djanira mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde se casou com Bartolomeu Gomes Pereira, um maquinista da marinha mercante. Corriam os anos da Segunda Guerra Mundial, da qual o Brasil relutava, ainda, em participar, e o fantasma da morte, outra vez, passou por sua casa, quando um submarino alemão torpedeou o navio em que o marido trabalhava, deixando-a viúva.
Novamente, era chegada a hora de recomeçar a vida a partir do nada. Djanira alugou um quarto na Pensão Mauá, no Bairro de Santa Teresa, passando a trabalhar como costureira. Lembrando seus tempos de despachada vendedora, logo começou a sublocar vagas na pensão.
Não tardaram em chegar os primeiros hóspedes: eram estudantes de pintura, com poucos recursos, e alguns pintores estrangeiros, estes refugiados de guerra. Entre os refugiados, estava o romeno Emeric Marcier, que lhe fez uma proposta mais que decente: em troca de alojamento e comida, ele lhe daria aulas de pintura, transferindo para ela parte da experiência adquirida na Romênia, ou como ele próprio dizia dizia, iria ensinar-lhe "a cozinha da pintura, que não se ensina na escola".
Juntava-se, pois, a fome à vontade de comer. Autodidata, refratária ao ensino tradicional, Djanira teve a oportunidade de aprender as técnicas e os macetes da pintura. Por outro lado, independente e com opinião própria, ela assimilou os ensinamentos mas permaneceu fiel ao seu estilo de pintura, simples, plano, parecendo até infantil para a um olhar menos atento. Só que os novos conhecimentos a faziam crescer na arte usando de pinceladas mais firmes, dentro de um conjunto melhor elaborado.
Djanira começa a ser notada
Enquanto a Pensão Mauá era o reduto de estudantes e pintores pobres, em outro local de Santa Teresa, o Hotel Internacional, reunia-se um grupo de pintores melhor situados na vida, incluindo, por exemplo, Arpad Szenes e sua esposa Maria Helena Vieira da Silva, ambos fugitivos, em virtude da ocupação da França pelos nazistas.
Os dois grupos não formavam aglomerados estanques: uns e outros se comunicavam e a estreante passou a receber apoio e incentivo daqueles que já possuíam nome no mercado, entre estes Lasar Segall, que se emocionou com as pinturas de Djanira.
Sua primeira participação se deu já no Salão Nacional de Belas Artes em 1942 (o mesmo ano em que enviuvou). Seguiram-se mais duas exposições coletivas, e uma individual, onde a venda de quadros lhe permitiu juntar algumas economias. Em 1945, viajou aos Estados Unidos, acompanhando Milton Dcosta, com quem vinha mantendo um flerte (Milton Dacosta se casaria quatro anos depois, mas com outra artista plástica, Maria Leontina).
O Brasil dos humildes
Com um nome já feito e tendo o trabalho reconhecido no mundo artístico, foi um suceder de coletivas e individuais, nas quais arrebatou vários prêmios. Em 1952, um prêmio de viagem pelo Brasil deu-lhe a oportunidade que tanto desejava, que era retratar, em suas telas, o cotidiano do brasileiro em suas múltiplas tarefas, assim como nas festas e práticas religiosas.
É a partir daí que surge o período mais expressivo no trabalho de Djanira, flagrando pescadores, homens rudes do campo, trabalhadores da cidade, enfim a gente simples que faz a história do país, ao mesmo tempo em que transportava para a tela, também, a mística do sincretismo religioso entre catolicismo e cultos afro-brasileiros, tudo colocado da maneira mais simples e efetiva.
«Sou uma nativa e não me envergonho disso», comentou uma vez a pintora. Correndo em suas veias o sangue indígena, caldeado ao germânico, procurava conciliar o internacionalismo da arte com o nacionalismo da cultura de um país e, deste nacionalismo, não abria mão.
Para Djanira, a cultura local é a amálgama de um povo, sua identificação, sua individualidade. Retirando-se essa cultura, desaparecem as raízes que mantêm um povo unido.
Fim de contrato
A milagrosa sobrevivência à tuberculose, contrariando todos os prognósticos médicos, parece ter sido, para ela, um contrato de prorrogação da vida, por tempo determinado. Em 1979, com a saúde novamente debilitada, deu por encerrado esse contrato, internando-se na Ordem Terceira do Carmo.
Renunciou à vida e ao nome que conquistara, passando a chamar-se apenas Teresa do Amor Divino, e recebeu as roupas simples usadas no convento. Foi com esse nome e com esse hábito de freira que Djanira morreu, em 31 de março de 1979. Se sua missão era espalhar à sua volta a beleza, a amizade, o amor e a solidariedade, então, missão cumprida. Descanse em paz. (Texto de Paulo Victorino)
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