O apogeu
Na Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro, gostava-se muito de festas. Qualquer acontecimento, mesmo aqueles de caráter puramente burocrático, revestia-se de solenidade. Dele participavam discentes e docentes, autoridades maiores e, por vezes, até o chefe da Nação.
Desde 1826, quando a Escola passou a existir oficialmente, o Imperador estava presente à solenidade de encerramento do ano letivo, com a abertura do Salão em que se realizava a exposição anual e onde se reunia o que de melhor os alunos e professores haviam feito durante o ano. Era também quando se davam as premiações àqueles que foram julgados os melhores.
Ocupando o trono por meio século, D. Pedro 2º, salvo por motivos de força maior, jamais deixou de comparecer às solenidades mais importantes. Na República, esse hábito talvez tenha sido descuidado por alguns Presidentes mas, ainda assim, nunca deixavam de enviar ilustres representantes para representá-los.
Pois, naquele ano de 1952, uma cerimônia fora de época estava acontecendo na Escola, e havia motivos muito especiais para que fosse bastante concorrida. Primeiro, homenageava-se o Diretor que, por motivos de força maior, via-se na necessidade de afastar-se, em definitivo, do cargo.
Segundo, pela primeira vez na história, uma mulher iria assumir a presidência da Escola. Tal como a Academia Brasileira de Letras, também a Escola de Belas-Artes era extremamente conservadora, refratária a mudanças, e restrições se faziam até para a inclusão de mulheres no corpo discente. Quem era esta, pois, esta mulher que, rompendo todas as barreiras, conseguira tornar-se professora e, por fim, diretora de tão importante Instituição?
Entre discursos inflamados e palmas calorosas, vindas de autoridades, professores e alunos entusiasmados, Georgina de Moura Andrade Albuquerque assumia, com todas as honras, glórias e inegável mérito, a direção da Escola Nacional de Belas-Artes, em cujos bancos, no início do século iniciara seus estudos de pintura, e em cujo recreio veio a enamorar-se de outro aluno, que tornou-se seu companheiro de jornada, até que a morte os separou.
Infância no Vale do Paraíba
Georgina de Moura Andrade (esse era seu nome de solteira) nasceu em 1885, em Taubaté, uma cidade seiscentista mergulhada no Vale do Paraíba, núcleo do desenvolvimento da região e parada obrigatória das autoridades que, pela linha férrea, tinham de viajar entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Mantendo seu estilo provinciano, a cidade tinha grande peso nas decisões políticas, influência que lhe garantiam as 86 fazendas de café ali existentes, marcando uma tradição de riqueza que vinha dos tempos da mineração de ouro nas Minas Gerais. Pioneiros do Vale do Paraíba participaram dessa exploração e Taubaté chegou mesmo a ter uma Casa de Fundição para transformar o ouro bruto em lingotes.
Antecipando-se ao tempo, Taubaté assinalava previamente decisões que, mais tarde, seriam tomadas na capital federal, como por exemplo, a libertação dos escravos que, nessa cidade, ocorreu em 4 de março de 1888, mais de dois meses antes de ser assinada a Lei Áurea.
É natural que tamanha importância da cidade fosse atração para forasteiros, cronistas em busca de brasilidade ou artistas interessados em fixar o pitoresco do interior brasileiro.
Foi assim que na virada do século, apareceu em Taubaté o pintor italiano Rosalbino Santoro, radicado em São Paulo e professor do Liceu de Artes e Ofícios. Nos meses em que lá permaneceu, realizando uma série de paisagens, Santoro aproveitou para dar aulas de pintura e Georgina, ainda menina, foi inscrita como uma de suas alunas.
Reencontro com a pintura
Talvez os contatos de Georgina com a arte tivessem ficado por aí e a pintura seria apenas uma entre outras prendas que toda jovem devia possuir.
Quis o destino, entretanto, que, numa viagem fortuita a São Paulo, a moça tivesse a oportunidade de visitar uma exposição que estava sendo realizada por Antonio Parreiras (1860-1937). Foi o estopim para explodir dentro de si toda a fúria da arte adormecida.
Artista multifacetado, Parreiras se dava bem em qualquer gênero, da pintura histórica ao nu, passando pela paisagem, o registro de figuras e as cenas do cotidiano. Sua pintura era um passeio pelas várias modalidades da arte; sua técnica, um desafio aos mais entendidos; sua emoção contagiava mesmo aqueles que viam um quadro pela primeira vez.
Fazendo renascer velhos sonhos, Georgina, com apenas 19 anos de idade, tomou uma séria decisão e mudou-se para o Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola Nacional de Belas-Artes. Queria ser pintora, e iria iniciar seu aprendizado desde o princípio, recapitulando tudo o que havia aprendido e corrigindo os vícios acumulados pela inexperiência, para um dia, quem sabe, chegar à altura do grande mestre cuja exposição visitara em São Paulo.
A alma gêmea
Na Escola, a moça teve seu caminho guiado por grandes mestres, como Henrique Bernardelli, um mexicano radicado no Rio de Janeiro e, coincidentemente, irmão do escultor Rodolfo Bernardelli, que vinha dirigindo a Instituição há mais de 15 anos.
Teve também seu ponto de ruptura com o ensino regular, ao conhecer um veterano estudante, Lucílio de Albuquerque, com quem iniciou um namoro, vindo a casar-se com ele um ano depois, em março de 1906.
Não que isso lhe trouxesse prejuízos aos estudos, muito pelo contrário. Lucílio, que viera do Piauí para estudar pintura, era aluno da Escola desde 1896 e, ao casar-se, já seguia o último ano do curso, enquanto ela engatinhava ainda no segundo ano.
Acontece que, expondo no Salão de 1906, com seu quadro Anchieta e o Poema da Virgem, Lucílio sensibilizou a Comissão Examinadora, que lhe concedeu o Prêmio de Viagem à Europa, para uma estada de dois anos.
Georgina teve, pois, de trancar sua matrícula, para acompanhar o marido, e ambos permaneceram em Paris, não por dois, mas por cinco anos, freqüentando primeiro a École des Beaux-Arts e depois o Curso Julien, passagem quase que obrigatória de nossos bolsistas.
Foi um período de grandes dificuldades, em que a bolsa de Lucílio tinha de ser complementada com a venda de quadros pintados pelo casal. Mas ainda houve tempo para pintar outras obras que, remetidas ao Brasil, permitiram participar dos Salões anuais da Escola.
De volta ao Brasil
Finalmente, em 1911, o casal estava de volta ao Brasil, já formado artisticamente e pronto para enfrentar o mercado, instalando-se ambos com ateliê no Rio de Janeiro.
A partir de 1927, Georgina passou a integrar o corpo da Escola Nacional de Belas-Artes, primeiro como livre-docente, depois como catedrática-interina e, finalmente, ocupando, como titular, a cátedra de Desenho.
Sem saber, estava se preparando para enfrentar uma tremenda virada em sua vida. Seu marido Lucílio de Albuquerque veio a falecer no ano de 1939, quando Georgina tinha 54 anos, ocasião em que ela teve de assumir sozinha as responsabilidades familiares.
Por essa ocasião, o casal possuía mais de uma centena de quadros e, orientada por amigos e colegas, a artista tomou uma decisão: em sua própria casa, montou o Museu Lucílio de Albuquerque, ao qual incorporou todo o acervo familiar e, paralelamente, fundou também uma escola de desenho e pintura, destinada a ensinar a crianças os primeiros passos na arte.
Não lhe faltou reconhecimento
Se a vida não foi um mar de rosas, também não faltou a Georgina, como também não faltara ao seu marido, o reconhecimento pelo trabalho realizado. Além dos inúmeros prêmios recebidos nos Salões anuais, participou de várias exposições internacionais e de todas elas voltou para casa com medalhas.
Em seu Estado, recebeu o Prêmio Prefeitura de São Paulo, em 1942, e o Prêmio Governador do Estado, em 1949. E, coroando todos esforços, em 1952, tornou-se diretora da própria Escola Nacional de Belas-Artes, a primeira mulher a receber tamanha honraria e responsabilidade.
Tal como seu inspirador, Antônio Parreiras, também Georgina percorreu todos os gêneros de pintura. Entre seus quadros figuram retratos, naturezas-mortas, nus, cenas do cotidiano, paisagens e marinhas. Sua pintura tem leves traços impressionistas, resultado de seu contato com artistas franceses, nos cinco anos que morou em Paris.
Georgina de Albuquerque faleceu em 1962, aos 77 anos de idade, tendo ganho o respeito dos meios artísticos. Está representada, por suas obras, nos grandes museus brasileiros, em especial no Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro e na Pinacoteca do Estado de São Paulo. (Texto de Paulo Victorino).
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