O desfile
Aquele agrupamento de meninos «fardados», desfilando garbosamente pelas ruas do bairro de Campos Elíseos, em São Paulo, parecia mais um batalhão de soldadinhos de chumbo, como aqueles que aparecem na suíte Quebra Nozes e invadem o sonho da menina na noite de Natal.
À frente, seguia a fanfarra, marcando o passo com seus tambores: logo em seguida, os pequenos alunos do Liceu Coração de Jesus, em uniformes de soldado de verdade, com quepe, cinturão, botões dourados, polainas e sapatos brilhantes, pondo inveja nas demais crianças, que sonhavam um dia estudar no Liceu, só para participar desses desfiles.
Do alto da torre da igreja, no largo Coração de Jesus, a estátua do Cristo Redentor, altiva, contemplava o horizonte e assistia o espetáculo, com os braços voltados para a frente, acolhedores, como que esperando o momento de embalar os devaneios de cada um daqueles meninos.
Na rota do disciplinado batalhão, como não poderia deixar de ser, figurava a passagem pela rua principal, em frente ao Palácio dos Campos Elíseos, sede de governo e residência oficial do Interventor do Estado que, de uma das janelas, apreciava o espetáculo, juntamente com outros curiosos.
A exibição pública dos alunos, em seus imponentes uniformes, era o ponto alto do ano letivo, um deslumbramento para os olhos do público, um orgulho para os pais de alunos e uma compensação às crianças matriculadas naquela instituição.
A outra face da lua
Terminada a exibição, os alunos, estudando em regime de internato, recolhem-se aos seus alojamentos e voltam a enfrentar a rotina de todos os dias, que em nada se assemelha ao brilho do espetáculo oferecido momentos atrás.
Do pátio interno, avista-se a mesma torre, mas agora com o Cristo voltado de costas. E as paredes da igreja, juntamente com os alojamentos, as salas de aula e os muros altos da escola, serviam de contenção para evitar que algum daqueles menores, colocados sob a guarda do estabelecimento, viesse a escapulir.
Era quase uma prisão, sujeita a rígida disciplina, onde estudar chegava a ser a única diversão possível e os momentos de liberdade se reduziam às férias ou aos finais de semana, quando muitos deles saíam das quatro paredes, levados pelas mãos dos próprios pais.
Dentre os internos se achava Arcângelo Ianelli, então com dez anos, que, matriculado precocemente no Liceu, seguia já o seu quarto e último ano do primário. E, numa ansiedade crescente, contava os dias que faltavam para o encerramento do curso.
Não que viver naquele ateneu pudesse se classificar como uma punição, muito pelo contrário. Qualquer pai, com recursos financeiros suficientes, ansiava colocar suas crianças ao abrigo da instituição, que só aceitava meninos. O ensino rigoroso, a disciplina severa, quase militar, a firme instrução religiosa, compunham uma base educacional e moral acima da média, garantindo ao formando uma sólida estrutura, um aval à capacidade e ao caráter, uma garantia de futuro.
Mas Ianelli era rebelde por temperamento, refratário a qualquer outra disciplina que não lhe fosse imposta por ele mesmo, disposto sempre a lutar contra qualquer coisa que lhe constrangesse os movimentos, fossem os muros do Liceu ou os grilhões representados por imposições estranhas aos seus desejos e ambições.
Foi, pois, com alívio, que viu terminar seu curso naquele ano de 1932, voltando para casa com um diploma, e tendo que defrontar-se, no convívio familiar, com a concorrência de um irmãozinho que nascera naquele ano, o pequeno Rafael, com quem os pais dividiam agora as atenções.
Da escola ao ateliê
Arcangelo Ianelli nasceu em São Paulo no ano de 1922 e seus pais faziam parte da colônia italiana, tendo estes chegado ao Brasil no princípio do século, oriundos do sul da Itália.
Desde os primeiros anos, o menino relacionou-se com o desenho da mesma forma com que aprendeu a andar ou segurar talheres. Era algo ligado à própria alma, que não precisava ser ensinado, mas que brotava espontaneamente de suas mãos. E se a escola muito o ajudou, dando-lhe preparo para enfrentar a vida, no desenho os professores pouco puderam fazer por ele, pois a arte, já a trazia consigo, e seu desenvolvimento dava-se mais pela intuição que pelos estudos.
Bem que tentou levar avante o aprendizado pelo método convencional, matriculando-se, em 1940, na Escola Paulista de Belas-Artes, que tinha, entre seus professores, grandes mestres da pintura em São Paulo.
Mas a escola era um fardo pesado, violentando seu temperamento, e em 1942, prosseguiu no estudo da pintura livre, visitando regularmente o ateliê de Colette Pujol, professora da mesma instituição. E quando esta viajou para a Bahia, em busca de novos subsídios para a sua arte, Ianelli passou a frequentar o ateliê de Waldemar da Costa, mestre do Liceu de Artes e Ofícios, que tinha nesse momento outra aluna aplicada, Maria Leontina.
O autodidatismo tornou-se, pois, o caminho natural por onde escoava a arte de Ianelli, que lhe brotava da alma, e que ele transpunha para a tela com a simplicidade de uma criança, a brincar com pincéis e as tintas.
Obviamente, havia sério compromisso com a técnica, mas esta era assimilada pela observação, jamais absorvida por fórmulas pré-estabelecidas. Se isto lhe atrasava o percurso, nem por isso seu caminho era travado. Cada etapa demorava mais a se firmar, mas sua arte contava com uma espontaneidade que o tornava diferente de tudo o mais.
O Grupo Guanabara
Por aquela época, era comum, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a formação de grupos livres de pintura, seja pela necessidade de compartilhar idéias, ou pelo simples desejo de romper com a escola formal, ainda presa ao academicismo. Embora tratando-se de jovens iniciantes, não raro se juntava a eles algum estudante mais experiente, ou mesmo um professor, que dava uma orientação geral, sem entretanto prender seus pupilos aos cânones da arte tradicional.
Foi assim por exemplo que, no Rio de Janeiro, o mestre Manuel Santiago (1897-1987) passou a orientar os «meninos» do Núcleo Bernardelli, convencido de que, pelo seu próprio caminho, eles dificilmente alcançariam um nível técnico capaz de colocá-los no mercado. E de lá surgiram nomes como os de Pancetti, Malagolli, Bustamante Sá e Milton Dacosta.
Com o mesmo propósito, formou-se em São Paulo o Grupo Santa Helena, em que jovens, quase todos pintores de paredes, quase todos autodidatas, se reuniam para trocar ideias, recebendo orientação do professor Mário Zanini. E de lá sairam para cenário artístico Rebolo e Volpi, para citar apenas dois nomes.
Em 1948, formou-se na zona Sul de São Paulo o Grupo Guanabara, que se reunia à noite na oficina de molduras de Tikashi Fukushima. Eram quase todos japoneses ou de descendência nipônica, mas entre eles podia-se encontrar alguns «estrangeiros», e a estes se juntou Arcângelo Ianelli.
Nos fins de semana, saiam todos pelas ruas de Vila Mariana, ou pelos campos do Brooklin ou de Santo Amaro, em busca do pitoresco, para fazer esboços que, depois, eram discutidos e, alguns deles, transformados em quadros.
Não havia gênero ou estilo definido. Cada qual pintava o que desejasse, sem interferências ou oposição. Mas ao final, todos lucravam com esse ambiente de confraternização, trabalhando em conjunto para o desenvolvimento geral.
O resultado prático foi a realização de exposições, entre 1950 e 1959, das quais participaram os integrantes do grupo e mais artistas convidados, entre eles Manabu Mabe e Tomie Ohtake.
Com a exposição de 1959, o Grupo Guanabara foi extinto, cada um seguindo seu próprio caminho. E Arcângelo Ianelli, já com nome firmado na praça, iniciou seu vôo solitário, caminhando por entre as nuvens, enfrentando tempestades e vencendo desafios.
Em busca do Geometrismo
Até 1960 a pintura de Ianelli foi abertamente figurativa e, embora apresentasse avanços significativos na técnica, não logrou experimentar estilos mais em voga na arte e que eram praticados mesmo por aqueles artistas incluídos em sua roda de amigos.
Na década de sessenta, vagarosamente, mas com firmeza e direção, sua arte começou a evoluir. As figuras, ainda visíveis, começavam a perder sua forma e, aos poucos, as linhas e formas geométricas passaram a dominar por completo os quadros que pintava.
Organizava suas obras em séries, numa evolução coerente, em que um quadro deixava o mote para a pintura do seguinte e cada série se encadeava harmoniosamente com a série que vinha substituir. Tudo isso, sem bloquear a intuição do observador externo, conforme ele próprio declarou em entrevista:
«O quadro deve falar apenas por si, sem necessidade de dissertações. Deve transmitir algo às pessoas sensíveis, somente pelo conteúdo pictórico. Nunca com a finalidade de "contar uma história, revelar estados psíquicos", etc. Devemos deixar esse problema aos literatos, que se expressam muito melhor em seus livros. Um pintor deve ter em mente realizar, antes de mais nada, pintura.»
Exposto ao mundo
Em sua carreira, até hoje em contínua expansão, Arcângelo Ianelli já tem em seus registros quase uma centena e meia de participações em individuais, exposições coletivas e retrospectivas.
Várias vezes premiado, seus quadros percorreram o mundo, visitando países americanos, como Equador, México e Peru. Estiveram também nos principais centros da cultura europeia, como Itália, França, Alemanha e Inglaterra.
Paulistano por convicção, elegeu São Paulo, cidade natal, como o lugar onde passaria sua vida e desenvolveria sua arte. Nela instalou o próprio ateliê e nela continua trabalhando com desenvoltura e com a mesma organização adotada desde o princípio da carreira. Sua arte é um curso ordenado, seus quadros denotam uma constante evolução cujo limite é o próprio infinito.
(Texto de Paulo Victorino)
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